12 de janeiro de 2010




Go to your bosom; Knock there, and ask your heart what it doth know.
William Shakespeare (1564 - 1616), 'Measure for Measure'

Happiness is nothing more than good health and a bad memory.
Albert Schweitzer (1875 - 1965)

A cynic is not merely one who reads bitter lessons from the past,
he is one who is prematurely disappointed in the future.
Sidney J. Harris

   Lembro-me como se fosse hoje... foi no ano em que tudo mudou, o ano que trouxe toda a mudança ao de cima, o ano em que o arco-íris se esbateu e todo o mundo passou a ser uma escala de cinzentos com laivos de cor aqui e ali, só para não se perder o contacto total com a realidade... Em parte e à sua maneira, isto que te vou contar também me ajudou a tomar consciência dessa mudança, se mais era preciso...

   - Tenho saudades de ir à terra...
   As lágrimas escorriam-me pela cara. Estava a chover também e sentia falta de qualquer coisa que não conseguia perceber porquê, na altura. A falta de ir à terra dos meus pais foi a primeira coisa de palpável que me assomou nesse ano. Podiam tirar-me tudo, menos isso. Veio sorrateiramente, tomando conta de mim, apoderando-se do que eu ia sentindo, mesmo sabendo que, anteriormente, alturas houveram em que já se tinha passado mais tempo sem lá ir do que aquele que, nesse momento de necessidade, tinha passado. No entanto, era, então, isso que eu desejava.
   - Então havemos de ir brevemente à terra... - disse o meu pai.
   Mas era complicado. A hora de entrada no colégio, ao domingo, tornava a estadia mais curta do que o normal e, apesar de adorar lá estar, aquela era a terra do meu pai e era ele quem sofria sempre mais com as partidas. Raízes...
   Nessa hora, um sorriso assomou-se-me na cara e, pela primeira vez em semanas, o coração alegrou-se. Brevemente voltaria ao meu mundo, àquele que eu conhecia, onde me sentia como um peixe na água. Um oásis na realidade vigente.


   Semanas depois, num dia chuvoso, partimos em direcção à terra... Estava mais feliz mas não estava propriamente feliz, ou tão feliz como noutras ocasiões. Não era a chuva, não era o caminho, era... sei lá, o problema estava mesmo dentro da minha cabeça, decididamente. As coisas estavam a mudar, eu via-as a mudar e não gostava do que estava a ver. Os meus olhos tinham-se aberto do sonho para a realidade com um corte demasiado brutal, demasiado seco, demasiado definido, a bold, 3 pts e 1/2. Num momento sonhava, no outro acordava. Num momento sorria, no outro chorava.
   Lá chegado, o cinzento continuou. A alegria que esperava reencontrar no contacto com as pessoas, na brincadeira com os primos e os amigos, no resto da família, não passou de uma mera esperança não concretizada. Tudo continuava cinzento e neutro a meus olhos. Onde antes havia cor, substância, música e vivacidade (mesmo em dias de chuva), havia agora cinzentismo, humidade, recolhimento, introversão, uma neutralidade indiferente que permeava por todos os poros. Pensava "Também isto?! Também aqui?!?..." e mal podia crer. O meu ultimo reduto de identidade tinha desaparecido... daí para a frente, seria a busca pelo que se perdeu ou, como mais tarde aconteceu, a re-criação (possível) do Eu, como Demiurgo em potência, para o Bem e/ou para (acima de tudo) o Mal do Mundo...
   Vejo agora, ou sinto agora - não sabendo se pela maneira como essa mudança se efectuou - que as transições devem-se processar com os olhos o mais abertos possível.
Para que saibamos de onde viemos, para que vejamos para onde vamos, para não perder o rumo, para saber o que causou verdadeiramente essa mudança, para saber o que fomos em cada ponto dessa mudança, para nunca perdermos rasto (nem por um segundo) daquilo que somos durante o processo de mudança. Olhando para trás, percebo agora que grande parte do corte grosso que sofri, acontecera precisamente porque perdera a ligação ao que eu era. Algo me tinha impedido de ter a plena consciência de tudo o que estava a acontecer e, acordado que estava num novo mundo, antipodalmente distante do que eu ocupava anteriormente, fui obrigado a construir-me a reinventar-me. As velhas regras tinham mudado, ou então fui eu que saí de um mundo em que as novas regras eram o padrão para outro em que as velhas regras estavam mais fortes que nunca. E não o podia compreender. É óbvio que não podia compreender. Mudar do novo para o velho só pode causar incompreensão e confusão. E é óbvio que queria o meu mundo de volta. Qualquer um quereria. E os soluços que eu ouvia à noite eram o sinal disso.

6 comentários:

Sílvia disse...

Benvindo! :)

Bom ano p ti!

AGomes disse...

Gostei muito de o ler. Parabéns!

Chloé disse...

As vezes perdemo-nos numa procura fora de nós, depois temos de fazer o caminho inverso em direcção a nós: desbravar as ilusões, as crenças, os muros que tinhamos construido. Só então, depois de nos encontrarmos, de nos reconhecermos e sobretudo de nos sabermos identificar e marcar esse lugar poderemos partir sem nos perdermos. Aí partimos... partimos... sem nunca deixar o nosso lugar dentro de nós. E que grande esta nossa vitória ... nas cinzas da nossa derrota!

Hélio disse...

Aqui a questão nem sequer era o partir para longe de si, mas sim o ter sido brutalmente expulso de si mesmo e, com isso, ter perdido todas as referências do seu mundo... a viagem de retorno a si mesmo, após uma partida involuntária (e, no entanto, permitida) de olhos vendados, a meio da noite, em silêncio (quase como que um teleporte cego) é uma tarefa épica, hercúlea, de muitos e longos anos...
E qualquer vitória que não tenha por base "as cinzas da derrota", arrisca-se a ser uma vitória oca e temporária (digo eu!).

Sofia disse...

Expulso de si? Hum... nem quero pensar como (aliás a forma que pensei é brutal), mas sei que te conduziu mais perto de ti porque graças a Deus o que temos de melhor está sempre dentro de nós! :-) Nem que seja a forma de ver o mundo. Sim, uma vitória está sempre misturada de tristezas e/ou perdas.

Hélio disse...

É claro que sim. Nem que seja pelo claro facto de que, no caminho para a Vitória, teve que se dar cumprimento ao Direito quintessencial Humano: Escolher. E, quando se escolhe, deixa-se sempre algo para trás.