25 de novembro de 2010




There is only one way to defeat the enemy,
and that is to write as well as one can.
The best argument is an undeniably good book.

Saul Bellow (1915 - 2005)

The most important work you and I will ever do will be within the walls of our own homes.
Harold B. Lee (1899 - 1973)

He who allows himself to be insulted, deserves to be.
Pierre Corneille (1606 - 1684)

  - Como assim, "despedido"?
  - Despedido... posto na rua, demitido... é preciso mais algum sinónimo?
  - Continuo sem entender... mas porquê?
  - Infelizmente, porque tem de ser... cortes no pessoal... Como sabe os primeiros a ir são os departamentos "de luxo": marketing e publicidade, inovação e tecnologia, controlo de qualidade (mais ou menos), recursos humanos (alguns), ambiente (maioria), etc, etc...
  - E agora tenho culpa do departamento que ocupo?? Sempre fui competente, desempenhei bem as minhas funções e fiz mais do que era exigido contratualmente. No entanto, só porque não sou um 'drone' da fábrica, tenho de ir parar à rua!
  - Meu caro amigo, alguém tem de ir parar...
  - Ai sim?? Porque é que não vendem um dos carros da frota e cortam nas ajudas de custo da administração? Porque é que não cortam no salário dos administradores? Porque é que não congelam os salários e distribuem os previstos aumentos em melhorias à produção?
  - O amigo sabe tão bem como eu que isso é impossível. A ultima coisa a ser tocada é no salário dos administradores... nisso e nas férias... Escute, não mate o mensageiro, o patrão manda e eu transmito... lamento... Como estipulado no seu contrato, sobram-lhe 30 dias aqui na empresa. Considere-se notificado...
  - Pois sim... bardamerda com vocês todos, chulos, corja de filhos da puta!!! Isto não fica assim...

  Bateu com a porta, cortando a palavra ao chefe do departamento de R.H. Caminhou para fora do edifício dos gabinetes e entrou no armazém de expedição. Olhou para todas aquelas paletes de produto acabado, pensando que tinha devotado 23 anos da sua vida a uma causa que agora ia pelo cano abaixo. Tinha "vestido a camisola" da equipa, tinha dado horas preciosas do seu tempo de lazer para que o trabalho saísse bem feito e concluído a tempo e horas. 23 anos, 23 longos anos enterrados num buraco sem futuro. Durante anos tinha observado outras empresas do género a surgir, a tornarem-se, por vezes, em concorrências que ameaçavam o escoamento do produto e a definharem, tendo a empresa conseguido sempre 'sobreviver' a essas recém-chegadas que prometiam inovação no sector. Mas, por muita inovação que tivessem, nunca tinham a experiência de anos, necessária à resposta às exigências dos consumidores. E sabia que o seu papel nisso tinha sido muito relevante.
  "E tudo isso para quê? A empresa continuará, sem mim, sem mais uns quantos que, como eu, suaram bem a camisola para agora serem despejados na rua, do pé para a mão, sem um futuro visível. Que será de mim, um homem com quase 50 anos?", pensou enquanto, no meio dos corredores entre as paletes, fitava a carta com o anúncio de despedimento. O desespero começou a assomar-se-lhe no peito, pensando na mulher em casa. Felizmente que os filhos já tinham crescido e tinham a sua vida, fora de casa...

  O restante desse dia foi cumprido como quem cumpre as suas últimas horas de vida. Seguiu para casa, pensativo, ignorando a forma como iria dizer à mulher o que lhe tinha acontecido. O homem da casa, a cabeça e o amparo da família, aquele que traz o pão para casa, desempregado... a ideia era aterradora, o sentimento de vergonha era corrosivo, opressivo, asfixiante. Era uma afronta à sua condição de homem, algo que ia contra tudo o que lhe havia sido ensinado, num mundo em que o marido ia para o campo e a mulher ficava a cuidar do lar e dos filhos. "Sempre assim foi e sempre assim será!", dissera-lhe o pai, na sua primeira saída conjunta para o campo. "É o homem que deve sustentar a família e não o contrário. As mulheres não servem para fazer as coisas do campo, a não ser, talvez, dar de comer à 'criação' e apanhar as coisas da horta, ou pouco mais que não seja a lida da casa e tomar conta dos miúdos." Na altura isto fizera-lhe um pouco de confusão (afinal, as mulheres eram tão humanas como os homens e podiam ser tão fortes como eles - pelo menos a mãe batia-lhe com tanta força como o pai, parecia-lhe) mas, quem era ele para pôr em causa o que o pai dizia? Nem a sua mãe o fazia!... Só podia ser verdade. E assim se ficou.
  Com o tempo, essas 'regras' haviam sido desvirtuadas e sofrido algumas alterações. A mulher já não ficava em casa a tomar conta da mesma e das crianças. Agora, iam trabalhar como os homens, faziam exactamente a mesma coisa que um homem, apesar de, em certas profissões, continuarem a receber menos que um homem. "A vida está difícil e muito cara. Se uma pessoa quiser ter um pouco mais que os pais, só pode ser assim. Só um a trabalhar hoje em dia não chega." No entanto, continuava a acreditar que a mulher não devia ganhar mais do que o seu marido. "Um homem não tem nada que ser sustentado pela mulher. Era só o que faltava! Só um retardado ou um estropiado é que se deixa sustentar e eu, graças a Deus, não sou nem um nem outro." O caminho para casa era, nisto tudo, um calvário. A cada quilometro que passava, a sensação de desconforto aumentava e a sensação que a sua vida estava prestes a acabar regressava. "Que desonra... que vergonha..." - pensava, por entre a alternância de luz e sombra dos candeeiros que já iluminavam as ruas - "sem o meu trabalho, quem sou eu?... se não sirvo para fazer nada, que raio de homem serei eu?". A simples ideia de ficar em casa todo o dia, feito um inútil, era suficiente para lhe contorcer as entranhas e ficar com a vista turva. Já imaginava os comentários: "Olha, lá vai o desgraçado...", "...não devia ser boa rês, para o terem mandado embora...", "Oh, agora é que é uma rica vida, a viver à conta da mulher!...", "... ou então, com a idade que tem, a viver do fundo de desemprego até se reformar...", "... pois, e um gajo a trabalhar p'ra sustentar esta cambada..." Os olhares acusadores, as opiniões da vizinhança, sombras...

  - De forma que foi assim...
  - Mas como, explica-me, como é que te põem assim na rua, com 23 anos de serviço?!! Não se pode pôr assim uma pessoa na rua com tantos anos de serviço, muito menos sem justa causa! - exclamou o mais novo.
  - Pois é, mas pelos vistos, podem. Dizem que o acordo foi selado entre o sindicato e a administração como parte das medidas de recuperação da empresa.
  - Ohh sim - riu-se a mulher - recuperação do quê? Só se for do saldo da conta dele, depois de ter andado, de 5 em 5 meses, a trocar de carro, quase como quem muda de ceroulas! Ele e os filhos, que as pessoas bem repararam!... não há dinheiro, não há dinheiro, mas é para quem lho dá a ganhar... não há dinheiro, uma merda!!! - adicionou, com visível desdém...
  - Mas é que nem se compreende essa história de 'recuperação'! Sempre tivemos encomendas, a fábrica nunca parou nem trabalhou a meio-turno! Os camiões sempre a chegar para carregar, a Antónia - a das Vendas - andava sempre de um lado para o outro a acertar com a Produção como é que se podia fazer para que uma ordem de fabrico saísse antes d'outra... não se percebe, é que não se percebe!! - vociferou, gesticulando.
  - E agora? - perguntou-lhe a mulher - que é que vamos fazer à nossa vida?
  - Sei lá... - disse, baixando os olhos.
  - Ah, mas é melhor que saibas porque não é com o meu salário mínimo que se consegue sustentar uma casa e pagar as despesas que temos.
  - Mas o que é que queres que eu faça? Não vou andar a pedir de casa em casa, ? É claro que vou andar à procura de emprego e, enquanto não me arranjo, vou fazendo uns biscates por aí.
  - Humpf, menos mal... mas mesmo assim estou para ver como é que vamos fazer...
  - Ó pai, de certeza que o mano também vai querer ajudar com qualquer coisa - juntou o mais novo.
  - Isso é que era bom!!! Era só o que faltava: serem os filhos a sustentar os pais! Além disso, ele tem bem com que se entreter, com mulher e filho.
  - Olha, só peço à Nossa Senhora dos Aflitos que nos guie por estes tempos!! - exclamou a mãe, levantando-se para ir mexer o caldo que estava ao lume. Estava espesso, era de 'sustância', como diziam. Na cozinha, de traços simples, o aroma do caldo grosso difundia-se, garantindo algum conforto ao espírito - E agora ponham-se a jeito que a sopa está pronta não tarda. Saco vazio não se tem de pé! - acrescentou.
  - Sim, Nossa Senhora e os santos todos... - disse, o homem, entredentes.

  No dia seguinte, ele pediu ao filho para o acompanhar até à fabrica, já que, estando a família em contenção de despesas, mais valia que ele lhe desse boleia antes de ir para a faculdade.
  - Olha, podes esperar aqui um pouco enquanto eu vou ali à secretaria tratar de umas coisas? Não me demoro nada...
  - Não há problema: vi um café numa rua ali ao lado, preciso de lá ir comprar tabaco e aproveito e bebo um cafézinho.
  - Ai sim? Então já lá vou ter...
  Passada quase meia hora, foi ter com o filho ao café. O dia estava húmido, tinha chovido de manhã e amenizara para um nevoeiro. Ao dobrar a esquina, reparou nas luzes coloridas que estavam perto do café. "Não me digas que já houve bronca ali...", pensou para consigo. Foi-se aproximando do café e reparou no grupo de pessoas que estava em redor de algo no chão. Perto, uma ambulância estacionada com as luzes de emergência accionadas esperava, de porta aberta, que trouxessem a maca com o acidentado. Aproximou-se para ver o que se passara e foi então que não pode crer nos seus olhos: era o seu filho que estava a ser carregado para a maca e não parecia, de todo, ter sido 'bem tratado'.
  - Afastem-se, é o meu filho!! Deixem-me passar!! Deixem-me passar, pá, porra!!! André, André!!!
  - Calma, calma!!! Tenha calma, homem!! - gritou um polícia que tinha sido destacado para o acidente. - O senhor é familiar do acidentado?
  - Sou sim, sr. agente! - respondeu-lhe, com visível pranto. - Por favor, ele está bem? o meu filho está bem?? diga-me, por favor!!
  - Tenha calma, se fizer favor! O seu filho foi atropelado por este veículo, dirigido por aquele senhor ali... - apontou para um homem que falava com outro agente - Ele estava a atravessar a estrada neste local e, com as condições climatéricas e de piso como as que se verificam, o condutor, em excesso de velocidade, não teve tempo de reacção suficiente e colheu o seu filho. Não teve hipótese nenhuma, lamento informá-lo.
  Olhando com mais atenção para o condutor, o pai reparou que não era nem mais nem outro que o administrador da fábrica. A raiva inundou-o como uma chuvada repentina num deserto seco - naquele momento, aquele era a sua nemesis, o seu anti-ego, o alvo a abater. Começou a caminhar lentamente na direcção dele, acelerando um pouco à medida que ia chegando perto do ex-patrão. "Agora está distraído, é o momento...". - Filho de uma grande PUTA!! - gritou, enquanto desferia um pesado soco na cara. Naquele gesto ia toda a sua indignação, toda a sua revolta, ódio, sentimentos negros que o possuiam há já algum tempo. O agente ficou estupefacto a olhar, sem saber para que lado se virar. - Não tens olhos para ver o que fazes, meu grandessíssimo cabrão!! Claro que não, só sabes olhar para o teu umbigo, só existes tu no teu mundozinho de merda!.. andas por aí a foder a vida aos outros, a torto e a direito, só p'ra que sua excelência tenha tudo o que quer... se tem pressa, atropela quem quer que seja, se não ganha o que quer, despede-se no pessoal, não é cabrão? - gritou entredentes, enquando desferiu um pontapé nas costelas do homem, que ficara a gemer no chão. À vista disto, o agente 'decidiu-se' a travá-lo.
  - Tenha calma, homem! Tenha calma ou terei que o deter!...
  - Então detenha, estou-me a cagar p'ra essa merda! Também só me falta acontecer isso!... Mas este cabrão ainda vai apanhar mais umas vezes antes de eu ir 'dentro'!! - acrescentou, dando um safanão, soltando-se e desferindo mais dois biqueiros no corpo do ex-patrão. - Filho de uma grande puta de merda, cabrão do caralho!... E isto ainda não é nada, 'tás a ouvir? - vociferou, já com dois agentes às suas costas a segurá-lo e a prendê-lo - Ainda vais ter mais do que mereces, 'tas a ouvir ò besta do caralho??
  Arrastaram-no para o carro-patrulha, enquanto enviava mais um impropérios. Durante a viagem até à esquadra, não proferiu uma palavra. Na sua cabeça repetia-se a imagem do filho a ser carregado para a maca e a dar entrada na ambulância, em grande aparato. "Estava tão pálido... o que será dele?..." pensou, amargurado. Este sentimento cedeu o lugar a outro mais violento, em direcção ao seu patrão, de cólera e raiva profundas. Foi oscilando entre estes dois sentimentos que fez o trajecto entre o acidente e a esquadra. Depois dos procedimentos normais à entrada, meteram-no numa cela, sozinho - um canto simples, com uma cama suspensa de uma parede, mas razoavelmente limpo, com uma sanita metálica a um canto.
  - Agora vais ficar aí, a arrefecer as ideias esta noite... e se amanhã ainda estiveres 'quente', passas aí outra. Vais ver, é um sítio porreiro!: quem vem aqui uma vez, geralmente, volta sempre... Ainda por cima gajos como tu, desempregados e tudo... - provocou-o o guarda, dando um risinho de desdém, no final.
  - Ao menos... avisaram a minha mulher que estou detido?
  - Sim, claro. Ela pediu que lhe dissesse que passa por cá amanhã... - disse, virando costas, deixando-o sozinho.


  Noite adentro, não conseguia dormir.
  "Bonito... Isto está a correr mesmo bem... Primeiro, o emprego, depois o filho e agora, 'fui de cana'... a vida não me podia estar a correr melhor... Ora vejam só!, no 'xadrês'... se o meu pai me visse, acho que me deixava a apodrecer aqui, e isso é dizer pouco!... Ah, mas o cabrão mereceu-as... se perder o emprego não é desculpa, perder o filho não será uma óptima desculpa para lhe dar umas bofetadas valentes??... Eu sou apenas um homem, tenho direito à indignação, e há coisas que um homem não consegue controlar... é um filho, porra!!!... Como é que ele estará? Não sei nada dele... está de cama? está em coma? está... nem quero pensar... de certeza que está vivo, senão já mo tinham dito. Mas o coração contorce-se sempre... E com isto tudo ainda nem sei o que vou fazer à vida... ah, e agora com cadastro vai ser uma maravilha para arranjar emprego!, até fazem fila!... no que me fui meter... Ahh, mas como é que ele estará?...".
  Lá fora, um cão latia ao escuro e um carro cortou a noite no piso molhado.

  O sol nasceu, levantou-se e decaiu, sempre coberto por nuvens. Ele, mais calmo (e depois de uma noite em branco), foi solto.
  - Tiveste sorte, o tipo não quis apresentar queixa. - disse-lhe a mulher.
  - Sorte não, se calhar ficou com medo do que lhe podia fazer enquanto aguardasse julgamento. Vamos ver o miúdo ao hospital?
  - Vamos... está quase na hora das visitas...
  - O que é que disseram sobre ele? Sabes de alguma coisa?
  - Não... só me disseram que tinham de o operar e que ia ficar nos cuidados intensivos...
  - Que merda, pá... - soltou entredentes, num suspiro - vamos lá a ver como é que ele passou a noite... não deve ter sido melhor que a minha...
  - Fizeram-te mal lá dentro?
  - Não... estava sozinho na cela. Os 'bófias' não me chatearam... foi só para arrefecer as ideias...
  - E bem fizeram eles! A mulher do Estevão ligou-me e disse que o tipo ligou para a empresa a dizer que não ia aparecer lá durante 3 ou 4 dias, que estava de baixa médica... deixaste-lo num bonito estado, deixaste... - disse, indignada.
  - Só lhe fez foi bem! E foram poucas as que lhe dei!! O cabrão do caralho vem a abrir daquela maneira e atropela-me o miúdo?... Que merda é essa???
  - Homem, ele nao o viu!! Estava nevoeiro!
  - Viesse mais devagar! Mas esse gajo pensa que tem o 'rei na barriga'!...
  - E se calhar até tem! Neste momento, ele tem a faca e o TEU queijo na mão... não te esqueças que eles ainda têm de mandar os teus dados com a cartinha para o fundo de desemprego para a Segurança Social. E se ele quiser, não ta dá, percebes??
  - Isso é que era bom!! Ele se me quiser fora dali vai ter que abrir, E BEM!, os cordões à bolsa - não te esqueças que o acordo foi para um grupo de trabalhadores e não exclusivamente para mim.
  - Oh homem, mas tu és burro ou fazes-te? Então depois da sova que lhe deste, ele não te podia despedir por justa causa? Qualquer vantagem que tu tinhas, perdeste-la quando lhe foste às fuças!! Os papeis não querem dizer nada!... - disse, gesticulando.
  - Eu.. hmmm... isso... isso nao quer dizer nada... - balbuciou ele.
  - Ai não que não quer!... Vamos ver... vamos ver... - suspirou ela.
  Nem tudo eram más notícias: o filho estava fora de perigo e a cirurgia correra bem. No entanto, teria de fazer fisioterapia para que voltasse a caminhar como antigamente, mas, de momento, tinha ficado paraplégico e, andar, só de cadeira-de-rodas. Perante esta revelação, os pais ficaram apreensivos - mais despesas, e a situação que já não era nada fácil. Passaram o tempo da visita com o filho, acarinhando-o e consolando-o pelas más noticias. O filho mostrara-se com um extraordinário bom humor e mais preocupado com o pai do que com ele - acreditava piamente que iria conseguir voltar a andar. E rira-se a bom rir com a descrição do enxerto de porrada que o pai dera ao ex-patrão.
  - Também não era preciso tanto!
  - Se calhar não, mas na altura até me pareceu pouco...

  Os dias foram passando, juntaram-se em semanas, e sucediam-se pesarosamente. O recém-desempregado foi arranjando alguns biscates pela terra onde vivia, dando uns ajustes numa torneira por aqui e por ali, ajudando a rachar lenha, afinando um motor acolá. Coisas assim do género. "Você tem tanto jeito para estas coisas! Porque é que não monta uma empresa?", ou, "Parece que faz magia com as mãos, homem! tem sempre solução para tudo!" eram os piropos mais ouvidos, findado o biscate em questão. E era bom ouvi-los, chegava-lhe um calorzinho ao coração. Mas, apesar de tudo isso, a maioria do tempo passava-o em casa, procurando um emprego nos jornais e revistas, pedindo ao filho - entretanto regressado a casa - ajuda para ver se encontraria qualquer coisa na internet. O passar dos dias desanimava-o, aliás, o passar dos dias desanimava tanto pai como filho, cada qual com suas razões.
  Estava-se então num destes dias mortos, em que se vegetava frente à televisão, sem mais fazer senão ver a vida passar. Chovia e o tempo não estava mais sorridente do que ele mesmo. Aproximava-se a hora em que ia levar André à fisioterapia e, durante todo este tempo de recuperação, tinha levado o filho a pé, já que o seu carro não se apresentava condições de transporte de um inválido. Aliás, na maior parte dos dias, quem tinha levado o carro tinha sido a mulher, já que ficava mais barato ir para o trabalho de carro do que de transportes. Hoje não seria excepção. Empurrar a cadeira de rodas, ao mesmo tempo que se empunhava o chapéu, não era tarefa fácil, tendo em conta que o centro de terapia ficava a 2 km. É claro que por Amor, mais a mais por amor a um filho, tudo se faz e tudo se vence. Mas, uma coisa é a idealidade... outra é a realidade. E, na realidade, ele não estava com cabeça nenhuma para fazê-lo.
  "Não era mesmo bom que houvesse uma maneira de adaptar à cadeira um sistema de carretos, como numa bicicleta, mas que fosse amovível... assim ele podia ir mexendo os braços e ia fazendo exercício... ou então uma cadeira que fosse barata, que permitisse essas adaptações... e atracar uma bicicleta, se fosse preciso... isso é que era!...". Em jovem, trabalhara numa oficina como mecânico, algo que moldara toda a sua vida profissional, em que acabara por exercer funções mais ou menos relacionadas com mecânica. E aqui está algo que poderia, efectivamente, experimentar. Tinha tempo, tinha habilidade, não custava nada em tentar...
  - Pai, estou pronto... Vamos? - perguntou-lhe o filho, sentado na cadeira de rodas, já equipado a rigor e com um fato-de-oleado por cima - Pai? Estás a ouvir?
  - Sim, filho! - respondeu, sobressaltado - Desculpa, estava cá com as minhas congeminações.
  - Outra vez?... Lá está o pai a cismar sobre trabalho...
  - Oh André, não é nada disso... nada disso que estás a pensar. Mas também não interessa... Vamos lá embora, então.
  André deu balanço à cadeira, abanando a cabeça e abriu o guarda-chuva.

  O cheiro a óleo e massa consistente fazia-o sentir-se vivo. "Muita gente não gosta", pensava ele, "mas também, muita gente não sou eu, nem faz o que eu faço. Eu gosto." E gostava de mais: gostava do som das ferramentas, de mexer em máquinas, do som do metal contra o metal, de fazer coisas, de as ver funcionar... Era um acto quase divino, pensar e materializar aquilo em que pensava - um acto criador, no fundo. E, tal como vinha nas Escrituras, ao admirar a obra concluída, ele via que era bom.
  Nesse momento, estava a trabalhar na ideia que tinha tido. Tinha carretos e tinha vários pedaços de metal que tinham sobrado de outras engenhocas que tinha criado na oficina de casa. Soldadura também não faltava, tinha comprado "no tempo das vacas gordas e loucas" (como costumava dizer) um equipamento de soldador que nunca tinha utilizado muito. Agora ia-lhe dar jeito. Estava a braços com um problema na articulação do adaptador para bicicleta, uma ideia que achava que iria dar muito jeito "a muito boa gentinha". O telefone tocou.
  - André, podes ir ver quem é?... - gritou para dentro de casa, enquanto tentava encaixar dois segmentos metálicos. O telefone continuava a tocar. - André??... Ó André!!... - Levantou-se - Raio do miúdo deve estar a ouvir aquilo que ele chama de música com aquelas coisas nos ouvidos, 'fones' ou que raio aquilo é... - ia resmungando pelo caminho. - Estou?
  - Estou sim, sr. Junqueiro? - uma voz masculina soou do outro lado.
  - É sim. Quem fala?
  - Daqui fala Afonso Pedrosa, advogado litigioso nomeado pelo tribunal sobre o caso de atropelamento do sr. André Junqueiro. Como está, sr. Junqueiro?
  - Prazer em ouvi-lo, sr. dr. Vai-se andando, obrigado. Em que posso ser útil?
  - Bem, é o seguinte. Na sequência do processo aberto por auto da polícia, e averiguados que foram os factos, tenho a comunicar-lhe que o juiz-instrutor do processo declarou-se favorável à sua parte, deliberando também que recebesse uma indemnização no valor de cinquenta mil euros referente à compensação por danos corporais e morais sofrida pelo sr. André.
  - A sério?... Mas isso é... é óptimo. Mas, espere lá. Como sei que está a falar a sério? Como posso saber que o sr. é advogado?
  - Compreendo que possa parecer estranho porque, de facto, nunca falámos pessoalmente. Mas fazemos assim, o senhor pode, para já, consultar o processo e a deliberação no site do ministério da Justiça na Internet. O número do seu processo é o 201057621-PCDM-2353 e o juiz foi o Meretíssimo Juiz Gonçalves de Carvalho. E quanto ao nosso encontro, pode passar pelo meu gabinete na... 3ª feira...uhmmm... às 15h? Pode ser?
  - Pode ser, perfeitamente. E onde fica o seu gabinete?
  - Fica na Av. General Filipe Almeida, nº. 24, 2º Esquerdo. Fica então combinado, 3ª às 15h, sr. Junqueiro. Uma boa tarde para ao senhor!

  Não era mentira e, de facto, veio a comprovar-se que a deliberação do juiz lhe era favorável - a primeira boa notícia em alguns meses. Mas as nuvens não se tinham dissipado ainda: a sua némesis voltou a atacar e recusou-se a pagar o deliberado pelo tribunal.
  - Então e agora? como é que vamos fazer? - perguntou Junqueiro ao advogado.
  - Bem, agora vamos apresentar queixa-crime por incumprimento de decisão judicial. E vamos ter de esperar pelos efeitos dessa decisão.
  - Eu não sei... não era melhor deixar isto passar em branco?... afinal, neste país só se condena o 'peixe miúdo', pessoas como ele passam sempre incólumes... Estupores...
  - Precisamente por isso, sr. Junqueiro, é que temos que o fazer... escute, o pior já passou - provar que houve culpa e que o acidente poderia ter sido evitado, mesmo naquelas condições adversas! Desistir agora seria um erro de dimensões épicas, um descalabro!
  - Talvez... mas quanto tempo mais se terá que esperar? E como provar que ele tem as condições financeiras necessárias, bens suficientes para que possa pagar a indemnização? Ele pode ter colocado tudo em nome dos filhos... essa gente sabe como fazer as coisas, mais para mais gente como a da laia dele...
  - Não se preocupe, não se preocupe... - disse o advogado, rindo - a Lei tem mecanismos para lidar com casos desses. Além disso, os sinais de riqueza exterior são evidentes: é dono de uma empresa viável, com algum sucesso, tem várias viaturas... uma pessoa assim não pode ter tudo em nome de outrem. Em última análise, há sempre a empresa que pode ser penhorada.
  Ele ficou em silêncio pensando nas implicações que tudo isto estaria a ter para si, para os seus e que poderia vir a ter para os seus antigos colegas... a empresa em processo de penhora... dezenas de ex-colegas seus postos, subitamente, na mesma situação que ele... Era tudo uma enormidade, um abuso de consequências que se escondiam por detrás de um facto e de um gesto tão simples, algo que aconteceu numa fracção de segundo. E, de facto, mais do que ele - com a sua mente simples - poderia imaginar, acontecimentos destes, revelados, são como pequenos gestos criadores, pequenos 'big bangs' em que num momento existe todo um potencial velado, invisível à consciência humana, e no momento seguinte, é libertada uma miríade, uma multiplicidade elevada quase ao infinito de acontecimentos, enredos, personagens interligadas, causas e consequências para além dos devaneios mais fantasiosos e coloridos de um esquizofrénico.
  - Muito bem... avance...


  Enredos dentro de enredos, causas, consequências, células de acções geradoras de mais acções, como uma raiz crescente no solo do tempo... Aquilo que parecia ser uma mera brincadeira, acabou por se desenvolver em algo potencialmente interessante: algum tempo depois de ter construído o sistema de carretos na cadeira de rodas e o adaptador para atrelar bicicletas, as dificuldades em casa obrigaram a entregar a cadeira de rodas. Prevendo essa situação, Junqueiro tinha posto mãos à obra numa cadeira de rodas de sua autoria, algo que fosse prático, muito estável, fácil de manobrar (e de arrumar) e de construção sólida (sem ser demasiado pesado). O seu 'dom' e experiência mecânica veio a revelar-se de enorme utilidade. A cadeira, experimentada por André ao longo da concepção, era tudo o que Junqueiro queria e também muito confortável. Para além disto, mais um bónus: o sistema que tinha engenhado para a cadeira anterior provara adaptar-se com toda a rapidez e facilidade, conferindo-lhe assim um carácter de universalidade.
  Apesar de todos estes avanços, Junqueiro foi dar com o filho, um dia, pensativo à janela do seu quarto, com vista sobranceira sobre a rua e boa parte da povoação.
  - Então, filho, está tudo bem?
  - Ah... está pai, não te preocupes... - disse, com um vago sorriso.
  - Está mesmo?... É que não me parece... Queres falar disso?
  André desviou a cabeça em direcção à janela, lentamente, perdendo o olhar na paisagem em diante, num silêncio de segundos.
  - É que... não sei, por vezes penso se os médicos não se terão enganado nos prognósticos... Há meses que faço fisioterapia e continuo sem ter força nas pernas para me manter de pé, quanto mais caminhar... É tudo tão desanimador... e eles tinham dito que, com algumas semanas, voltaria a caminhar e, depois de uns meses, poderia largar as canadianas... E onde estão elas?... Nem da maldita cadeira de rodas consigo sair, quanto mais canadianas!! Mas o pior nem sequer é isso... - pausou.
  - E então? O que é o pior?
  - O pior... está dentro de mim, aqui dentro - disse, apontando à cabeça - Todas as noites acabo sempre por sonhar com o momento do acidente, vezes e vezes sem conta... aquele carro sempre a vir contra mim, vindo de trás de um véu esbranquiçado, opaco, num repente sem retorno... e moi-me, moi-me a cabeça... Por vezes, nos piores dias, cansado de tanto sonhar com isso, até tenho receio de adormecer, com medo de dar em doido durante o sono...
  Um silêncio constrangedor instalou-se entre eles. André tentou silenciar as lágrimas que teimavam em escorrer-lhe pela cara durante o discurso e Junqueiro não sabia o que fazer, dizer ou, sequer, pensar. Silêncio. Quebrado apenas pelo fungar de André e pelo movimento do braço de Junqueiro em direcção ao filho, puxando-o para si, num abraço carinhoso. Passaram-se alguns momentos quando finalmente se voltou a falar.
  - Hmmm... André... eu gostava de te saber o que dizer mas... sou apenas um homem simples... não tenho os estudos que lutei toda a vida para te dar a ti e ao teu irmão, tentando fazer de vocês melhores pessoas do que eu... Só te sei dizer que eu acredito que tu vais ficar bem, que vais voltar a andar como antes... e tu também tens de acreditar! Há coisas... eu não sei explicar... mas sei que há coisas que só avançam se acreditarmos MESMO... tem de partir de dentro de ti, bem de dentro de ti!... sei que não é fácil, mas começa como um sonho, um sonho que vemos ser possível... depois, lentamente, começamos a acreditar nele, mais e mais de cada vez que o sonhamos, até que se chega a certo ponto em que vemos que ele é, afinal, MESMO possível... daí até o realizar, é um 'tirinho'...
  - Será assim tão fácil, pai?
  - Fácil não é... tens de ter paciência e de ir tentando sempre... não basta sonhar e ficar de braços cruzados... há que se fazer por isso.
  - Bem, não se pode dizer que não esteja a fazer por isso... já o acreditar... acho que o tempo é mesmo o meu maior inimigo...
  - Pelo contrário, André - disse-lhe, levantando-se para sair - o Tempo é o maior aliado que poderás ter...
  - Sim, mas... a que preço?...
  Desânimos do dia-a-dia à parte, a árvore do Tempo desenvolveu mais um ramo, no sítio mais inesperado, a olhos humanos talvez. Certo dia, no Centro de Fisioterapia, um dos terapeutas reparou que a cadeira de André não era a cadeira habitual. Conversa puxa conversa, após saber que tinha sido Junqueiro a fazê-la, acabou por querer saber em quanto é que ficaria fabricar mais umas quantas.
 - É pá, isso... não sei, porque fiz com uns restos de materiais que lá tinha em casa... mas sou capaz de passar por uma loja de ferragens e perguntar em quanto é que ficaria se comprasse o mesmo material.
  - Pois, é que, sabe, há pessoas que aqui vêm fazer fisioterapia e que, tal como você, por vezes, têm de parar de cá vir porque ficam paradas em casa, sem meios de se movimentar e totalmente dependentes da ajuda de outra pessoa... se as pessoas tivessem acesso a uma cadeira sua, sem pagar aluguer, que fosse barata e cómoda, seria definitivamente uma melhoria na qualidade de vida destas pessoas...
  - Sim, sim, estou a ver... tudo bem, eu brevemente trago-lhe isso, então.
  Junqueiro fez isso e ainda mais. Para além de calcular o custo de fabrico, comparou com o preço de outras cadeiras e o tempo que demoraria a fazer mais modelos. Vistas as coisas, teve a agradável surpresa de que até poderia fabricar mais cadeiras e vendê-las com uma pequena margem de lucro, ficando mesmo assim bastante mais baratas do que outras cadeiras. Ao saber desta notícia, o terapeuta disse que iria transmitir isso à direcção do Centro para saber o que eles diriam disso.
  A resposta não tardou muito. A direcção aderiu em massa à ideia e rapidamente encomendou vinte unidades. Junqueiro advertiu que, estando sozinho, ainda iria demorar um tempo a produzi-las pelo que, à medida que as fosse fabricando, as ia entregando. O pagamento, ficou assente, seria feito no acto da entrega. Junqueiro rapidamente pôs mãos à obra.

  - Ó homem, tu sabes quem é que era bom para te ajudar nisso? - perguntou-lhe a mulher - O Carlos, o teu colega. Sabias que ele também tinha sido despedido?
  - O Carlos? Por acaso sabia... mas acho que ele andava em vistas de ir trabalhar numa empresa de um primo dele.
  - Pois, mas estive à conversa com a mulher dele e parece que o primo acabou por dar o dito por não dito e agora está em casa sem fazer nada...
  - Pois... - disse, acabando de dar mais um aperto num parafuso, com esforço - e ele até tinha jeito para me ajudar nesta parte das engrenagens, porque o gajo lá na empresa até estava encarregue de verificar a mecânica da secção de Transformação... p'ra ele, montar isto era num abrir e fechar de olhos... depois tenho de ligar. - e voltou ao trabalho.
  Nesse instante, tocou o telefone. A mulher atendeu e momentos depois, gritou para a garagem:
  - Lúcio!! Ó Lúcio?!!... Anda cá ao telefone que é p'ra ti!
  - Quem é? - retorquiu.
  - É o advogado!
  - Ahh!! Diz-lhe para esperar uns segundos, que já aí vou!
  Passados uns momentos, falou finalmente com o advogado.
  - Estou sim? Dr. Pedrosa? Como está o amigo?
  - Esta tudo muito bem, obrigado, e o senhor? Olhe, trago-lhe boas notícias: o tribunal decidiu a seu favor o caso de incumprimento e deliberou em acórdão, após consulta dos bens registados em nome do seu ex-empregador, que deu como provado haver bens móveis e imóveis passíveis de penhora e que, mais, o sr. Junqueiro seja ressarcido nos cinquenta mil euros estipulados pelo acórdão do processo anterior no prazo de sessenta dias, findos os quais, caso não tenha procedido à indemnização, ficará sujeito a um agravamento da mesma, com base em juros de mora e penhoras coercivas.
  - Boa! São, de facto, óptimas notícias. Mas isso não arriscará a empresa?
  - Infeliz ou felizmente, não. A empresa encontra-se na posse de vários titulares, com quotas diferentes. Ele tem a maioria mas é uma maioria relativa: os outros administradores podem sempre gerir a empresa caso a sua parte seja penhorada.
  - Bem, é um alívio saber disso. Então, o sr. dr. pode então tratar de tudo isso?
  - Com certeza, sr. Junqueiro, com certeza. Aliás é por isso mesmo que aqui estou, a seu mando e do Tribunal! - disse rindo - Os meus préstimos só vão cessar quando a indemnização tiver sido efectuada.
  - Pronto, muito bem então... fico então a aguardar por mais notícias, sr. dr.! Obrigado por tudo e até breve! - E desligou.


  Tudo parecia, então começar a encarrilar decentemente. Mas, no mundo, há muitos tipos de pessoas e nem todas, como bem se sabe, prezam o bem-estar das pessoas. O caso do empresário era um desses: após a segunda deliberação, entrou numa espiral de fúria em que clamava vingança por algo que, segundo ele, tinha sido uma tremenda injustiça. Afinal, ele nem tinha vindo depressa no dia em que tinha passado a ferro o "filho daquele subversivo" (nas suas próprias palavras). Há que dizer que, para ele, todos os empregados mais antigos - que, só por acaso, até eram da sua idade ou mais velhos - eram todos "calões, subversivos" e, a grande maioria deles, "ladrões até". Nada abonatório em defesa deles, se a opinião dele fosse a ser levada em conta. No entanto, é interessante denotar a forma como o umbigo de certas pessoas interfere na visão delas: no caso deste senhor, o umbigo dele, o seu Ego, era do tamanho da Europa. Ou lá perto.
  O problema dos Ego's é que fazem tomar atitudes que são, por vezes, muito pouco recomendáveis. E quando há sentimentos de ganância, raiva e auto-comiseração à mistura, pior. Na cabeça do empresário coisas terríveis começaram a tomar forma.
  - Nunca na vida aquele desgraçado vai ficar com dinheiro meu. Mais do que eu já lhe dei para se ir embora da minha empresa?? Nunca! Andou anos e anos a roubar-me, a ser pago uma fortuna para não andar a fazer nada! E depois, só porque a Lei obriga, ainda leva uma indemnização choruda! Mas parece que não ficou satisfeito porque ainda por cima ainda quer mais dinheiro!! Não lhe chegou provar que era culpado? Porque é que tenho que pagar se foi num hospital público que o miúdo fez os tratamentos? Ficou-lhe muito mais barato, com certeza... e não lhe ficou em cinquenta mil euros, de certeza que não!! Ah, mas ele vai-mas pagar... ele pode ficar com o dinheiro mas sou EU quem se vai rir por último!
  Decidiu então procurar Junqueiro a casa para lhe dar 'a lição que ele merecia'. Depois de perguntar à secretária qual a morada dele, dirigiu-se aí com uma arma no bolso, com o objectivo de lhe dar uma lição. Após alguns minutos, estacionou em frente ao portão da garagem, que estava entreaberto. Saiu, olhou em seu redor ("Óptimo, ninguém na rua", pensou) e bateu à porta.
  - Junqueiro! Junqueiro!! Está aí?
  Após uns breves instantes, Junqueiro assomou à porta.
  - Sr. Eugénio... o que é que deseja? - perguntou, com visível desdém na voz.
  - Quis vir aqui dizer-lhe umas coisas... já sei que tenho sessenta dias para lhe pagar os cinquenta mil euros que pediu..
  - Desculpe mas não 'pedi' nada a ninguém! - interrompeu Junqueiro - Eu só quis que fosse feita justiça!...
  - Cale-se homem!! Não seja estúpido!! Acha que eu ando aí a atropelar pessoas porque quero, porque gosto? O seu filho teve azar! Estava no sítio errado, à hora errada, foi o que foi! O acto não foi propositado!! Não tenho nada que lhe pagar.... aliás, não só não tenho, como NÃO lhe vou pagar... - A raiva na voz do empresário subia cada vez mais de intensidade.
  - Não vai pagar? Vai... ai isso é que vai! O Tribunal manda! E se não pagar, garanto-lhe que eles arranjam maneira que pague...
  - Está enganado, ladrão de meia tigela! Quem vai pagar é você!! - disse, cuspindo as palavras - Com o meu dinheiro você não fica!!!
  Sacando da arma, apontou-lha e disparou três ou quatro tiros. Dois fizeram ricochete no portão da garagem, um outro alojou-se na parede e o quarto acabou mesmo por acertar na parte superior do peito de Junqueiro. Perante aquilo, o empresário decidiu fugir antes que alguém fosse atraído pelo ruído dos tiros.
  Minutos depois, André veio à porta e viu o pai desmaiado no chão.
  - Pai, pai!!!! O que é que passou aqui??? PAI!!! - gritou, abanando-o.
  - Uhmmm... - gemeu Junqueiro, recuperando ligeiramente os sentidos - ...empresário... ameaças... tiros... AIII!!... doi... doi muito... - e silenciou-se.
  - Tem calma, pai, tem calma!!! Não te mexas, eu vou chamar uma ambulância.
  A ambulância chegou após alguns minutos e transportou Junqueiro para o Hospital mais próximo. Ao carregaram-no para a ambulância, ficou a perspectiva de um bom prognóstico.
  - O seu pai teve muita sorte... - disse o enfermeiro - A bala entrou num sítio onde não passa nenhuma estrutura crítica para o corpo. No entanto, perdeu bastante sangue e furou-lhe um dos pulmões. Em casos destes, é uma lotaria...
  Junqueiro teve mesmo sorte. Após umas horas no bloco operatório, ficou estabilizado nos cuidados intensivos durante uns dias e depois passaram-no para a enfermaria geral. Tudo o que precisava agora era repouso.
  - ... E ainda vai ficar com uma bela cicatriz e uma história para contar aos seus netos! - acrescentou o médico, no final de uma das suas visitas de rotina.
  - Ai, sr. dr., há histórias que mais valia que não existissem...

  Ao fim de umas semanas, a Polícia acabou por vir visitá-lo e fazer-lhe algumas perguntas. Já tinham colhido as provas todas no local do crime e só precisavam de saber algumas coisas sobre o crime em si. Junqueiro contou tudo o que se passara nesse dia, ou, pelo menos, o que a sua memória tinha retido. No final, os agentes agradeceram e garantiram que lhe dariam notícias do caso.
  Semanas mais tarde, sentia-se suficientemente bem para trabalhar. Acontece, porém, que ainda não podia fazer grandes esforços, pelo que as tarefas mais pesadas lhe estavam vedadas. Ficou preocupado: os dias passavam-se e a encomenda do Centro estava por entregar... mais do que isso, as pessoas que as iriam utilizar estavam à espera...
  - Tenho de fazer alguma coisa sobre isto... - pensou.
  Ligou para o seu antigo colega Carlos e expôs-lhe a situação. Fez-lhe a proposta de vir trabalhar com ele, sem nunca prometer salário já que o pagamento seria a contra-reembolso, que era tudo "muito directo", disse. Carlos, achando melhor pôr mãos ao trabalho do que ficar parado em casa, aceitou quase de imediato, adicionando que, no dia seguinte, iria ter com ele para começar logo a trabalhar.
  - Quanto mais cedo começar, mais cedo acabamos as encomendas. - dissera a Junqueiro.
  E assim foi. Com a ajuda de Carlos, e tal como previra, a produção das cadeiras acelerou consideravelmente, havendo lugar até, a alguns melhoramentos de pormenor nas mesmas. Passados alguns dias, Carlos virou-se para Junqueiro e disse:
  - Ó Junqueiro, sabes o meu primo? aquele que estava para me contratar há uns tempos? O tipo tem uma firma de distribuição e ele sempre me disse que se eu soubesse de uma boa oportunidade de negócio para lhe dizer que ele faria um bom desconto no transporte.
  - Sabes, por acaso, nas minhas divagações, já tinha pensado nisso... E se alguém me fizesse uma proposta de fornecimento de cadeiras? como é que iria entregá-las? É que eu não tenho maneira de as transportar! - disse Junqueiro a rir.
  - Pronto, agora já sabes! Se precisares é só dizer ao meu primo...
  - Por acaso, estou-me a lembrar que, enquanto estive internado, passou por lá um médico ortopedista... e o tipo ficou a olhar para a cadeira do André. Passado um bocado, veio ter comigo a perguntar onde é que a tinha comprado e disse-lhe que tinha sido eu que a tinha feito. O médico depois perguntou se tinha mais porque parecia uma ideia muito interessante e eu respondi que, por enquanto, ainda era modelo único mas que já tinha um pedido para fazer mais umas quantas. Antes de se ir embora, ele disse-me que se quisesse vender mais umas quantas que era só ligar-lhe. Mas não liguei muito a isso, pensei que estivesse na brincadeira...
  - Pois é, mas, a brincar, a brincar é que nascem as boas ideias e os bons negócios... há pouco tempo soube que o primeiro telegrafo que existiu, um não-eléctrico, em França, nasceu de uma brincadeira de crianças de dois irmãos. E, com o tempo, eles cresceram e um dia ele lembrou-se de propor ao rei da altura financiamento para instalar 'a brincadeira' por toda a França, criando assim a primeira rede de telecomunicações do mundo.
  - É no que dão as brincadeiras... - riu-se.
  - Mas eu acho que devias falar com esse ortopedista... nunca se sabe...
  - É verdade... - suspirou Junqueiro - nunca se sabe...

  Um dia, estavam os dois a trabalhar, e André entra na garagem.
  - Pai, tenho uma novidade para ti. - disse, com ar de mistério, meio a sorrir.
  - Então, filho? Que foi?
  - Sabes... acho que vais poder guardar brevemente a cadeira no futuro museu da Casa Junqueiro... repara.
  E, dizendo isto, apoia as mãos nas bancadas, uma de cada lado, e levanta-se, dando depois uns ligeiros passos, ficando em pé, a olhar para o pai. Os olhos de Junqueiro marearam-se de lágrimas, dificilmente contendo a emoção de ver o seu filho a caminhar de novo. Levantou-se e abraçou-o ternamente
  - Ó pai, então?? 'Tás-me a sujar todo de óleo e fuligem! - disse, a rir-se - Era para ser surpresa e, pelos vistos, parece que consegui! Mas ainda é tudo muito recente e está tudo muito fresco... ainda tenho umas valentes semanas de terapia pela frente.
  - Não interessa, - disse Junqueiro a secar os olhos - é importante celebrar as pequenas conquistas!!
  - Podes ter razão mas eu prefiro concentrar-me no trabalho que ainda tenho pela frente...
  André voltou a sentar-se na cadeira e afastou-se em direcção ao interior da casa. Quando estava prestes a sair, virou-se e disse:
  - Ah, e é verdade pai, tinhas razão... é preciso acreditar, é preciso sonhar... mesmo muito... e deixar o Tempo jogar a nosso favor. Como se costuma dizer "O Tempo tudo cura"... Essa foi a maior lição que eu tive nos últimos tempos... - e saiu.
  Virando-se para Carlos, Junqueiro comentou:
  - São estes momentos que nos fazem acreditar que tudo é possível, e que a vida vale mesmo a pena ser vivida...
  - É claro que sim! - respondeu Carlos - mas há duvidas? - e juntou-lhe uma amigável palmada nas costas.


  A investigação da polícia e consequente levantamento do processo-crime, deu como provada a culpa no crime de tentativa de homicídio, para além de outros crimes. Eugénio foi condenado a 15 anos de prisão, sem hipótese de liberdade condicional e sem redução de pena. Mais, viu ser algumas das suas posses penhoradas para pagar, não só a dívida de cinquenta mil euros mas também uma indemnização adicional por danos morais e corporais no valor de cento e vinte mil euros - um valor superior devido à sua reincidência neste tipo de ofensas e devido ao carácter deliberado da ofensa. No total, tinha a receber cento e setenta mil euros, uma quantia algo avultada mas que já tinha destino: iria investir a sério no seu novo negócio. Carlos falou com o primo que, tal como prometido (mas não sem alguma relutância), decidiu apoiar a empresa de Junqueiro ao nível da distribuição.
  E clientes?... Ao que parece, a primeira remessa de cadeiras de rodas foi um sucesso entre os frequentadores do Centro de Reabilitação que rapidamente quiseram trocar as suas cadeiras do costume pelo modelo Junqueiro, como lhe chamavam. Movimento seguinte, outros utentes, em numero bastante superior, quiseram ter em sua posse a nova cadeira. Desta feita, Junqueiro fez negócio directamente com os interessados, pelo que a pequena margem de lucro (anteriormente cobrada como comissão pelo Centro) reverteu a favor da sua nova empresa. Para além disso, Junqueiro decidiu ir falar com o médico ortopedista que, desde logo, garantiu recomendar as novas cadeiras a doentes seus - desde que houvessem modelos suficientes, claro. Também André contribuiu para o aumento das encomendas - a nível nacional, inclusive: com os seus conhecimentos de informática, decidiu criar uma página na Internet a publicitar as novas cadeiras e acessórios. Os preços anunciados eram atractivos e se a funcionalidade era questão, garantia-se também que, em caso de insatisfação do cliente, que o dinheiro seria integralmente reembolsado. Mas ver-se-ia mais tarde que tal nunca chegou a ser necessário: as cadeiras eram um sucesso retumbante.
  Mais trabalho exigia mais empregados e, para este efeito, pensou em contratar alguns ex-colegas com quem partilhou décadas de trabalho e que sabia também terem sido vítimas da ganância e sede de lucro de Eugénio. Tinha confiança neles e sabia que este sentimento era recíproco. Pelo menos ao nível da montagem, a qualidade só poderia melhorar. Mas não só: ao nível do ambiente na equipa, esse não poderia ser melhor - o que iria ajudar, definitivamente, a ter muito sucesso.
  Com André já a caminhar - com ajuda de muletas, ainda, é certo - e a empresa a correr sobre rodas, o futuro parecia brilhante a Simão Junqueiro. Os dias difíceis pareciam ter acabado e desse passado só restavam as memórias de tempos turbulentos. Junqueiro parecia atribuir tudo isto ao seu trabalho mas, bem dentro de si, ele sabia que isto era consequência da sua capacidade de sonhar e de não ter medo de arriscar em concretizar os seus sonhos. E, agora, era nisso que ele pensava, ao admirar a paisagem que se estendia aos seus pés e enquanto reflectia tudo quanto se tinha passado. "É preciso sonhar e acreditar... sempre... mas acreditar mesmo muito... daí tudo resulta e provém, fazendo por isso também...", recordava ele as palavras ditas a André meses antes. "Necesse somnis credo semper", dizia, também, o símbolo da nova empresa da família.

16 de novembro de 2010

     

Pakkanen puhurin poika
Talven poika hyyelmöinen
jäädät maita jäädät soita,
jäädät kylmiä kiviä,
etpä jäädä ihmismieltä
etpä ihmisen sydäntä!

Et kylmä inehmon mieltä
jäädä et ihmisen syantä
syömmessä on hengen lämpö,
tuli rinnassa ripeä,
povessa palava poltto
valkean vapauden kuume!

Minkä kylmät, virvoittavi
sykkivän sydämmen lämpö,
minkä jäädät, sulattavi
lauluni lakean voima,
poveni palava poltto,
valkean vapauden kuume!
Pakkanen, filho do vento gélido do Norte,
Filho gélido do Inverno,
Gelas as terras, gelas os pântanos,
Gelas as pedras frias,
Mas não podes gelar o espírito humano,
Nem o coração do Homem!

Não podes gelar nem o ânimo das pessoas
Nem os seus corações:
O calor do espírito reside no coração,
E o fogo no peito é lesto,
O peito abriga o coração ardente,
A febre da liberdade pura!

O que quer que geles, será reavivado
Pelo calor do coração palpitante,
O que quer que geles, será descongelado
Pela força inabalável da minha canção,
O meu peito abriga um coração ardente,
A febre da liberdade pura!

  "Não obstante as suas promessas de prazer, fazer amor causa ansiedade a muitas pessoas. Não se trata de um grande desempenho, mas de uma arte que requer uma certa perícia. Essencialmente, trata-se da expressão directa do desejo e da concretização de fantasias associadas aos mais intensos anseios. Podemos não entender ou não ter consciência das origens dos nossos desejos. Alguns actos podem ser importantes para nós - um beijo, uma carícia, um suspiro, um som -, embora não saibamos porquê. Nunca nos interrogamos acerca dos motivos dos nossos gostos particulares que, no entanto, podem ser só nossos. É possível que não venham descritos num manual de sexo ou que nos preocupemos com a possibilidade de serem perversões. O medo surge naturalmente quando damos alguma rédea aos nossos desejos, porque não é fácil confiar neles.
  Revelar o corpo também é revelar a alma, porque o corpo é a alma. Permitir que o corpo seja visto na sua nudez, que seja tocado e abraçado, é revelar a alma em toda a sua glória e complexidade. Mas nem sempre é fácil uma exposição tão total. Quem se presta a ser visto assim por outra pessoa, por muito que a ame? Haverá alguém em quem possamos confiar a esse ponto?
  Talvez encontremos alguém com quem estejamos dispostos a tentar esse nível de revelação, devido aos seus atractivos ou àquilo que representa para nós. Podemos desejar apenas conforto e contacto físico ou ansiar por relações sexuais. Fazemos amor e talvez nos mostremos vulneráveis, o que pode ser agradável e satisfazer a nossa atracção e anseios, mas também pode ser inquietante. podemos descobrir, até subliminarmente, que há limites para a nossa confiança, quer em geral quer com aquela pessoa em particular. No sexo, as inibições são tão significativas como as liberdades. [...]"

in Moore, T. et al., "A Noite Escura da Alma", pp 212-213 da ed. portuguesa pela Planeta Editora (trad. Maria Carvalho e Maria Marques)

6 de novembro de 2010



Those that think it permissible to tell white lies soon grow color blind.
Austin O'Malley (1858 - 1932)

Even in the darkness, every color can be found. And every day of rain brings water flowing to things growing in the ground.
Joss Whedon, Zack Whedon, Maurissa Tancharoen, and Jed Whedon

The courage to imagine the otherwise is our greatest resource, adding color and suspense to all our life.
Daniel Boorstin (1914 - 2004)

Where does the violet tint end and the orange tint begins? Distinctly we see the difference of the colors, but where exactly does the one first blending enter into the other. So with sanity and insanity.
Herman Melville (1819 - 1891)

Maturity is a bitter disappointment for which no remedy exists, unless laughter can be said to remedy anything.
Kurt Vonnegut (1922 - 2007)

We are like sculptors, constantly carving out of others the image we long for, need, love or desire, often against reality, against their benefit, and always, in the end, a disappointment, because it does not fit them.
Anais Nin (1903 - 1977)

No man with a man's heart in him, gets far on his way without some bitter, soul searching disappointment. Happy he who is brave enough to push on another stage of the journey, and rest where there are living springs of water, and three score and ten palms.
Lawrence B. Brown (1856 - 1941)

  Viver faz calos. Tal como trabalhar, diga-se de passagem. Mas os calos da vida não se limitam a uma face física, visível: também se desenvolvem no corpo mental e emocional e, tal como os calos que se desenvolvem nos pés - de caminhar em superfícies duas e ásperas -, ou nas mãos - de tanto escrever -, nos permitem caminhar sem dor por esses mesmos terrenos agrestes, ou escrever horas a fio tudo o que temos em mente, também estes calos mentais e emocionais nos garantem uma maior desenvoltura em situações de maior aperto nessas duas áreas.
  O grande problema com os calos é que... são feios. Inestéticos, grossos, não nos permitem sentir (por vezes) as coisas boas que a vida nos traz. Ou seja, ganha-se em eficiência, mas perde-se (em parte) na sensibilidade. E aqui volto a não falar só dos calos físicos. Também os outros podem retirar um pouco da nossa sensibilidade a certos acontecimentos da nossa vida. Além disso, tal como os calos físicos são disformes, também poderemos ter a tendência a pensar que a calosidade mental e espiritual nos deforma nesses dois corpos - e, de facto, assim é com certas pessoas (quase toda a gente conhece uma ou duas) nas quais as amarguras da vida as 'contaminaram', tornando-se elas, também, amargas. Mas tal facto não é regra, bem pelo contrário, creio. É que as calosidades emocionais e mentais são sinais de uma longa aprendizagem, no que se traduz por um crescimento espiritual que não regredirá jamais. Ora, sendo o corpo espiritual aquele que acaba por prevalecer na grande maioria das nossas acções - relacionando-se este mais intimamente com o mental e o emocional - a probabilidade de nos tornarmos insensíveis ao que nos acontece é relativamente baixa e, quando acontece, é porque a nossa comunicação interna entre estes três corpos, após um acontecimento marcante, não decorreu correctamente - i.e. a 'lição' não foi bem aprendida. Também temos direito a falhar: afinal somos só Humanos.
 Tudo isto me veio à mente quando me relembrei, recentemente, da maneira de como eu sentia na minha adolescência. Nessa altura, as emoções eram fortes, acontecesse o que acontecesse, e tudo era um desafio à mente: aprender, sentir e compreender eram as palavras de ordem durante essa fase. Na verdade, ainda o são, mas de uma forma diferente, ou, pelo menos, com prioridades diferentes. A cor é diferente. A saturação dessa cor é diferente: de cores tão berrantes como numa 'trip' psicadélica dos anos 60, a cada experiência mais intensa essas mesmas cores iam-se suavizando até se terem tornado, a certa altura, um mero contraste de preto e branco. E aí, o 'milagre'...
  A Vida, para quem o deseja, realmente, fornece-nos as lições mas também as ligaduras e curativos para as feridas feitas durante a aprendizagem. Mesmo quando toda a Esperança desaparece e se acredita em algo, mesmo sem se saber bem porquê - talvez porque um determinado Valor aprendido é tão importante, que se tornou numa trave-mestra do nosso Ser -, quando a nossa Intenção é tão forte e nos mantemos abertos (ao que ela oferece) e atentos, então os 'milagres acontecem... e as cores voltam.
  Podem não ser tão vivas como na adolescência, mas estão lá e servem para nos guiar convenientemente nesta Vida. Podem não nos deslumbrar, ou até deixar-nos desorientados com tamanha intensidade, mas são firmes. O nosso Ser sabe que precisa de ter resistência à adversidade, de forma a que desempenhe o melhor possível, mas também sabe que não pode perder demasiada sensibilidade - mesmo que se magoe um pouco no processo. O calo tem de existir, mas não pode existir "por si" e "para si" mesmo. O Espírito do nosso Ser sabe que, tal como na Vida, o Equilíbrio tem de ser respeitado. E atingi-lo (por muito que o Ego refile) não é uma perda em relação ao que se tinha - é Evolução, um ganho em Luz. Quem é que precisa de 'trip's dos anos 60, anyway?...