31 de agosto de 2009


Anything that has real and lasting value is always a gift from within.
Franz Kafka (1883 - 1924)

O Sol pôs-se.

Sentado. Fumo a escoar-se lentamente entre os dedos.

Não era um facto extraordinário, era comum, banal, certo... Tinha-o visto tantas vezes mas, desta vez, aquele astro flamejante punha-se com cores que lhe evocavam um estado de alma algo melancólico... melancólico não era a palavra, nostálgico. Isso sim, era isso que aquilo lhe parecia: uma ode à Nostalgia, à Saudade. Sabia-o bem, os tempos de antanho não voltariam mais, os centos de 'pôres-do-sol' que viu não voltariam atrás, os beijos trocados sob essa Luz ingrata, encantadora e ladra, os risos partilhados, os silêncios em reverenda adoração de um deus cronométrico e luminoso, os abraços quentes que se desejavam infindos e tão brilhantes quanto aquele que nos aquecia, também não.
"Oh, the Hell with it!", pensou e deu a volta ao carro.
O sol poente ainda queimava na retina, mas mais do que isso, queimava-lhe na alma a fuga inevitável do tempo e dos acontecimentos entre as mãos. A intangibilidade do que tinha acabado de acontecer era-lhe 'mind boggling', sempre o tinha sido e não iria deixar de ser. Inconformado com o correr do tempo, tentava agarrar eternamente, congelados, os momentos que melhor lhe sabiam mas mesmo esses, saboreados até quase à exaustão, teimavam em escapar-se-lhe pela 'mão'.
"One day, I'll freeze the freakin' Time...".
Máxima incongruência, o Tempo não se congela fisicamente. Ele apenas se cristaliza em minúsculas fracções na nossa mente, em lâminas, por vezes, tão cortantes como o gelo de Tempo que ele queria criar com a sua máquina revolucionária. Não lhe chegava magoar-se tantas vezes mental (e emocionalmente) com os cristais mentais? Era preciso cortar-se também fisicamente para saber que estava vivo? Esvair-se lentamente em sangue como em lágrimas de dor ou de saudade boa? Não lhe restava outra alternativa senão esperar que aqueles momentos que vivia se pudessem repetir novamente, e novamente, e novamente, numa 'perpetuum mobile machinatio' que, ainda assim, não lhe chegaria...

Sucedânio de Idealismo Fasível.

Cada momento é único precisamente pela sua volatilidade, por ser tão ténue, tão intocável ou incompreensível. Perpassa. E ele sabia disso. Ao querer desejar tornar palpável aquilo que ele não compreendia, arriscava-se a criar um monstro (ou mais, quem sabe) que o poderia(m) dominar 'ad vitam'.
"Too risky".
O instante cristalizado é a energia do 'todo-agora' concentrada num momento tangível. A mais destruidora das armas. A anti-matéria definitiva. Para que é que quereria ele criar isso? Mero capricho de um ego insatisfeito? Desejo de ser um deus à sua maneira?
"It'd be cool, 'though..."
Não se é senhor do Tempo. Ninguém o é, pelo menos deste lado da história. Nem no rio que corre, se pode agarrar na água toda, nem que esteja ela congelada. Não é dele, não é de ninguém. Para que é que seria preciso tocar na água toda? O precioso cenário que vislumbraria ficaria então arruinado pois é na intangibilidade do momento que reside a graça do que se assiste e se vive. E nem pensar em congelar as emoções adjacentes, para para sempre ficar nesse estado de êxtase e pura euforia. Também isso não é vida, pelas razões que, obviamente, se conhecem. É, no entanto, mais possível e há quem o consiga... e quem tenha sido destruído por isso.
"A Brazilian friend of mine used to say: 'quem vive de Passado, é livro de História e traça de biblioteca!' "

Ao chegar a casa, olhou pela janela da sala e viu a lua, gorda que nem um queijo, a sorrir-lhe por entre mares e continentes. O desejo de fixar esse momento assaltou-o de novo mas a sua alma simplesmente agradeceu, fez uma educada vénia, tirou-lhe uma foto, apagou o cigarro que fumava e dedicou-se ao seu jantar, o seu 'Agora' gritante, fugaz e imediato, completo.

17 de agosto de 2009


Perhaps when we find ourselves wanting everything,
it is because we are dangerously close to wanting nothing.
Sylvia Plath (1932 - 1963)

Um dia encontrei-me a desejar tudo. Não sei como cheguei a essa situação, mas um dia chegou até mim. Veio sorrateiramente como uma sombra cresce na noite, à medida que nos afastamos da luz que se projecta sobre nós. Começa por um simples desejo de algo que não podemos ter, passa-se para outra coisa que não podemos ter, na vã tentativa de compensar a falta da primeira, e assim por diante, acabando-se por desejar quase tudo, num ciclo quase infindo de desejos impossíveis...

Imaginemos isto: no início era a Ordem, e a Ordem mantinha tudo a funcionar em harmonia e perfeição. Certo dia, uma das partes do Todo que era a Ordem, ganhou vontade própria e olhou à sua volta. A vontade que lhe adveio deu-lhe personalidade (ou teria sido vice-versa?) e deu consigo a querer não ocupar aquele lugar mas sim outro que tinha visto ao longe. O problema é que ele tinha sido criado para ocupar o espaço onde normalmente estava e qualquer outra função era impossível de ser desempenhada com eficácia. No entanto, esta vontade impeliu-o a partir e a ocupar a posição que desejou. Assim chegado, tentou fazer aquilo que pensava conseguir fazer mas só conseguiu fazer o que normalmente fazia. Vendo que aquela posição lhe era adversa, olhou novamente em redor e encontrou outra posição que ambicionou. De novo, moveu-se e tentou fazer o que nessa posição era preciso mas de nada lhe serviu. Assim continuou indefinidamente. Entretanto, esquecera-se do local de onde tinha provindo e de como aquilo qe fazia, por pequeno que fosse, era importante para o bom funcionamento do sistema em que estava incluído, para a boa manutenção da Ordem, pelo que, a cada nova tentativa de adaptação, o sistema desequilibrava-se um pouco mais visto que as outras partes dependiam do que lhes chegava às mãos, e o que lhes chegava às mãos não era o que devia ser. Não se estranhe, pois, que, lentamente, a Ordem foi dando lugar ao Caos. Tendo visto que o Caos avançava, essa parte que tinha vontade própria tentava, tudo por tudo, manter-se nas zonas onde a Ordem ainda se verificava mas, a cada coisa que tentava fazer, o sistema ficava cada vez mais desequilibrado. Certo dia, parou. Olhou em seu redor e viu que, agora, era o Caos. O sistema tinha ficado desequilibrado irremediavelmente. Olhou em sua volta e viu que não havia sítio nenhum ao qual desejava pertencer. Pior, tentou lembrar-se do sítio ao qual pertencia e não conseguiu. Tudo lhe era estranho, já não era o sistema que tinha conhecido. Tentou lembrar-se do sistema mas também não conseguia: só tinha o leve vislumbre de que aquilo não era suposto estar a acontecer. Por fim, não aspirou a mais nada, nao sabia ao que aspirar, o seu propósito tinha expirado. Porque, no fim, tudo era o Caos e nada estava certo; porque, no fim, tinha-se iludido que poderia ter algo para o qual não tinha sido feito, estava num mundo que não era o seu.

Olho à minha volta e reconheço as coisas que aí estão. Sei que já aí estive, que já aí vivi uma parte da minha vida mas parece-me tão remota que nem parece ter sido nesta vida... parece ter sido uma outra, bem distante... não sinto as minhas raízes, não sinto o que fui, nada disso me diz o que quer que seja... É uma sensação estranha, mas é quase como se me tivessem derrubado tudo e dissessem: "agora, reconstroi.". Que quero agora? E como?

10 de agosto de 2009


- Can it be true that human life means nothing in this country?
- It depends whose life, madam...


Nikita Mikhalkov, Сибирский цирюльник (O Barbeiro da Sibéria), 1998

(de voortzetting...)

Na escuridão do quarto, ele não dormiu. As imagens que lhe corriam pela cabeça, as sensações, as emoções, fantasmas que o mantinham agarrado a um passado recente que ele nao desejou futuro. As lágrimas sacrificadas a um nada que se desvaneceu como nevoeiro (via-o agora), corriam agora dentro de si... E a culpa, essa miserável sensação de culpa, de algo que a Razão lhe dizia constantemente que não era responsável, atormentava-o com a sua mão fria e inclemente. "Porquê eu?? Porquê eu??..." A noite, caixa fechada à clarividência, ecoava os gritos que lhe ia na alma...

***

Encostado a uma árvore do jardim, embrulhado numa manta, observava as operações de rescaldo do que, horas antes, tinha sido um braseiro épico. Ainda não conseguia crer que todo aquele aparato tinha sido causado por si. As raízes daquilo eram mais profundas do que alguém poderia imaginar. "Tanta fantasia que poderia ter escolhido, tanto personagem histórico, tinha que arranjar um com uma espada... e o gordo tinha de pegar precisamente na minha cimitarra... local muito errado à hora errada...".
Perdido que estava nestes pensamentos, eis que duas pessoas se abeiraram dele e o interpelaram:
- Bom dia! Polícia Judiciária. Sou o agente Carvalho e este é o agente Liberato.
- Bom dia... que desejam?...
- Para já, a sua identificação, por favor.
- Aqui está.
- Entregou-lhes o B.I.
- Muito bem... Pode-nos dizer então, o que se passou esta noite?
Ele contou o que se passara dutante a noite. Os agentes escutaram com atenção e tomaram notas em silêncio, sem mostrar qualquer emoção.
- Quer dizer que foi tudo um acidente? Que não conhecia o dr. Vasco Garrido?
- Quem?
- disse ele, completamente às aranhas.
- O falecido... não o conhecia?
- Nunca o vi mais gordo. Já lhe disse que nunca tinha ouvido falar deste... convívio, muito menos deste 'resort' ou de quem por cá passa. Podem confirmar com os meus colegas.
- Já lá iremos. De qualquer forma, não se afaste muito... podemos vir a precisar de voltar a falar consigo. Resto de um bom dia...
- e afastaram-se.
- Porreiro...
Ele olhou para o ar. O dia adivinhava-se quente, abafado, um tormento mais para além do turbilhão já existente na sua mente. Sentia-se apertado, sufocado, cercado por todos os lados... e depois, Esperança, a culpa...
- Posso sentar-me?
Olhando para cima, viu Selena, também ela embrulhada num cobertor, e já vestida com um fato de treino. Ele esboçou um sorriso e apontou para o seu lado.
- Esteja à vontade...
- Bem... isto é que foi uma noite, não?... Comida, bebida, musica, dança... sexo... morte...
- Sim, acho que isto é o que se chama "o programa completo" de festas... só falta o café e o bagaço.
- Escuta... aquilo que aconteceu entre nós...
- ... foi so trabalho, certo?
- Não. Não foi. E tu sabes que não foi.
- Pois... é isso que me preocupa. Selena, escuta... eu não sei como lidar com isto. Tudo o que se passou hoje à noite... mesmo que só tivesse acontecido o nosso envolvimento já me daria imenso em que pensar. Não te conheço de lado nenhum, embora tenha a 'estúpida' sensação de te conhecer há uma vida inteira... eu sinto-me uma pessoa bem casada. O meu casamento nem está a passar por nenhuma crise nem nada. Não posso simplesmente chegar a casa e dizer "Esperança, desculpa mas quero o divórcio.". Não posso, por muito que me tenha sentido terrivelmente atraído por ti, por muito que tenha empatizado contigo... vai contra todas as regras lógicas...
- Eu compreendo... tu tens a tua vida, obviamente... Mas, apesar de saber que não adianta nada, também te posso dizer que a minha vida fora disto inclui duas crianças que tenho de sustentar porque o pai... evaporou-se (à falta de melhor eufemismo). Compreendo que, se fizesses isso, irias causar imenso sofrimento à tua família...
- ... que não é assim tão grande... ainda...
- ... e precisamente por isso, pelo que pode ser, eu compreendo que aquilo que se passou ontem tenha o mesmo destino que o sítio onde ocorreu: cinzas que o vento levará.

Ficaram em silencio durante um momento, olhando para os restos do salão Noir... por uma noite, uma vida diferente tinha-se-lhes desenhado em frente dos olhos. O que lhe fazia confusão, o que lhe continuava a fazer confusão, era o porquê de pôr em jogo todo o seu dia-a-dia, toda a sua rotina, no fundo, o seu mundo como o concebia, se esse mesmo mundo (como o concebia) não tinha razão nenhuma para ser abalado, modificado, derrubado, mudado num milímetro que fosse. Quanto a ela, quem sabe o que lhe ia pela cabeça: a esperança de uma vida melhor para si e para os seus, a alegria do encontro de uma alma com que identificasse, a ideia de uma partilha com alguém assim...
- Bem... acho que vou andando - disse Selena - Até... qualquer dia...
Os seus profundos olhos azuis diziam "quero ficar!" mas as suas pernas disseram outra coisa... Ele só a viu afastar-se, sabe-se lá para onde, sabe-se lá para que vida, que filhos, que emprego... a única memória que lhe iria restar era a do corpo, a daquela noite sumptuosa, e de como se afastou querendo ficar. A pergunta seguinte que lhe veio à mente foi: que vida, agora? Levantou-se e foi até ao quarto. Felizmente, esse edifício ficava numa zona à parte, pelo que o incêndio se restringiu unicamente ao salão Noir e mais um ou dois salões adjacentes. Ao entrar no quarto, foi com surpresa que viu que tinha lá visitantes inesperados.
- Bom dia senhor Arquitecto... Espero que a sua estadia aqui no nosso 'resort' não tenha ficado... demasiado... prejudicada com os tristes acontecimentos desta madrugada. - enquanto falava, de pequenos olhos negros fixos nos seus, tinha o tique de esfregar a ponta dos dedos uma nas outras, como se estivesse a apurar o tacto.
- O senhor é que é o responsável por este maravilhoso estabelecimento? De facto, os acontecimentos desta madrugada são deveras trágicos mas creio que já lhe foi transmitido que não tenho a mínima culpa nos acontecimentos. Havia mais lâminas na sala, o sr. Garrido podia perfeitamente, no estado em que se encontrava, ter pegado noutra qualquer. De qualquer forma, pelo andar da carruagem, a morte de alguém era, no mínimo, inevitável, fosse eu, ele ou a acompanhante. Nada foi planeado, como disse à Policia, tudo o que aconteceu foi um acaso.
- Correcto. Mas há um pequeno problema... o dr. Garrido era um dos nossos maiores accionistas e um dos principais investidores. Com a sua morte, o resort encontra-se agora com um futuro bastante incerto. Mais para mais com as obras que precisarremos de fazer devido ao incêndio. E depois disto, já ouvi diversos convivas que afirmaram que seria a última vez que participariam no nosso... 'sarau'... ou, até mesmo, que viriam aqui passar alguns dias de férias. O impacto do... 'acidente' de ontem é bastante superior ao que se pensaria imaginar 'a priori'.
- Sim, claro... compreendo... mas que desejam de mim, então?... qual o porquê da vossa visita aqui ao meu quarto? Digo-vos já que é um sinal de extrema rudeza e falta de maneiras, para além de profissionalismo da vossa área de actividade, como é óbvio...
- Sim, sim, mas tudo isso é agora... acessório. Perdemos uma peça muito importante para o nosso negócio, é verdade, mas estamos abertos a novos... investidores. Permita-me que lhe apresente dois dos meus sócios, o dr. Pascoal e o sr. Vassili Nikolaievitch Andreev. O dr. Pascoal é um industrial de sucesso, tal como o dr. Galhardo era, com inúmeros negócios de sucesso no estrangeiro, incluindo na Rússia. Foi aí que travou conhecimento com o sr. Andreev, também industrial de sucesso, com uma enorme mais-valia ao nível da sua carteira de... conhecimentos. Foi graças a essas ligações que este... 'sarau' se pôde realizar.
- Ainda não percebo aonde querem chegar...
- O que queremos dizer é que precisamos urgentemente de outro investidor para que este 'resort' se mantenha viável... Julgo saber que o sr. Arquitecto é sócio a um atelier de Arquitectura bastante conceituado, não é verdade? é até o grande responsável pelo sucesso do atelier... correcto?
- Sim...
- Então poderá, sem dúvida, convencer os seus colegas a entrar com uma participação do atelier na nossa empresa. Afinal, tendo um peso tão relevante na sociedade, eles não ousarão recusar-lhe esse pedido ou retirar-lhe a participação na sociedade.
- disse, com tensa gentileza, num sorriso levemente cínico.
- Certamente estão a brincar comigo... eu... vocês já sabem que eu não tenho culpa nos acontecimentos! - disse incrédulo - Estão agora a ameaçar-me por algo do qual não tenho culpa??
- Se 'architektor' não "impedir" Galhardo de matar puta, Galhardo "estar" "viva" aqui. 'Architektor' substituir Galhardo.
- grunhiu Andreev.
- Mas... mas... é de loucos...
- Bem, creio que tudo isto foi muito brusco para o nosso futuro sócio, Vassili.
- Disse, pousando a mão no braço do russo. Dirigiu-se para a porta e virou-se para ele. - Sr. Arquitecto, esperamos uma resposta sua para breve... esperemos também que seja do agrado de todos ou, no mínimo, positiva aos nosso interesses... caso contrário...
- ... 'kaput'.
- concluiu Andreev, num ligeiro esgar sorridente, deixando entrever umas quantas coroas douradas dos dentes.
- Tenha um bom dia e o final possível de estadia, sr. Arquitecto. Com licença. - e saiu, com uma pequena vénia, sendo seguidos pelos restantes.
Ele ficou sozinho no quarto e incrédulo. Andou de um lado para o outro, pensando no que poderia fazer, como iria dizer aquilo aos colegas. Sentiu-se preso, sentiu-se sufocado, abriu uma janela para poder respirar. Lá fora era como se nada se tivesse passado. O sol continuava a brilhar, alto, orgulhoso, esplendoroso, num céu profundamente azul, com algumas núvens muito ao longe. O ar, fresco, ajudou a acalmar-lhe as ideias mas nem por isso conseguiu pôr ordem ou sentido nelas. Tomou banho e começou a arrumar as coisas, paulatinamente, mas com a mente completamente ausente. Terminado isto, foi ao quarto de Álvaro para falar com ele. Álvaro abriu-lhe a porta com um ar consternado, esforçando um sorriso amarelado.
- Álvaro...
- Bom dia rapaz... que noite, hein?
- Pois... eu que o diga, não é?...
- Bom, mas agora vamos embora, e tudo isto não vai passar de um pesadelo... que até começou bem!
- riu-se.
- Não sei se vai passar assim tão rapidamente, Álvaro... acabei de ser visitado pelo corpo administrativo do 'resort', na pessoa do seu presidente e mais dois associados.
- Ah, conheceste então o dr. Vaz Dias! Óptimo sujeito, não é? Extremamente educado... com certeza que te vieram perguntar se está tudo bem e pedir as desculpas por tudo!...
- Antes fosse... creio que temos de ter uma reunião extraordinária de sócios do atelier. Oficiosa, claro... O caso é bastante complicado... - disse ele, gravemente, andando de um lado para o outro.
- Complicado?... Como assim?...
- Não te quero adiantar pormenores, Álvaro, temos de falar todos... desculpa, mas tem de ser assim, isto está tudo muito embrulhado...
- Tudo bem, quando estivermos todos para arrancar, na estação, falamos todos. Eu aviso os restantes.
- Obrigado Álvaro, espero que possam compreender o que se passa.
- Estás a assustar-me com isso tudo... mas não há-de ser nada que não se consiga ultrapassar, vais ver.
"Isso é o que tu pensas... estamos metidos em merda até ao pescoço... e eu até à ponta dos cabelos"
, pensou ele.
- Vou andando, então... - disse, saindo.

***

A despedida do 'resort' foi feita em silêncio, sem grandes sorrisos. A atmosfera estava pesada, por tudo o que aconteceu, pela inquietação levantada pela reunião de urgência. O sol já se tinha começado a inclinar para o horizonte onde, daí a umas horas, se iria pôr, dando lugar à noite, num ritmo impassível. À saída, ele foi abordado por Vaz Dias novamente, que lhe entregou um cartão com contactos, reafirmando e sublinhando 'esperar voltar a ouvir notícias' da parte dele. Cordial. Os agentes da Polícia Judiciária voltaram a abordá-lo, mas a conversa foi curta, tomando nota da morada dele, caso precisassem de mais depoimentos. Durante a viagem, ele ficou a olhar, absorto em pensamentos, para o cartão em mãos e para o céu, azul profundo, como os olhos de Selena. Selena. O coração apertou-se. O ardor da paixão fez bater o seu coração com mais força, a angústia de nunca mais a poder voltar a ver, a respirar com ela, a mergulhar naqueles olhos azuis corroía-o por dentro. E depois aquela dúvida terrível: "porque é que sinto isto, se sou tão feliz com a Esperança?". Algo estava mal e ele tinha de perceber o porquê. Entretanto continuou a olhar para o céu, que começava a ficar mais nublado.
Chegados à estação, decidiram conversar dentro da carrinha monovolume de Lionel, que sempre era mais espaçosa. Álvaro abriu a conversa.
- Jovem, diz lá então o porquê de tanta urgência.
Com ar pesaroso, contou o que se tinha passado de manhã ao chegar ao quarto, o encontro com Vaz Dias, Pascoal e Andreev, a sua 'proposta'...
- Mas isto é de loucos!! - gritou Lionel.
- Completamente inconcebível. Não queres fazer queixa? - perguntou Cláudio - Isso é ameaça à integridade física, chantagem... só para começar!
- Sim e sem provas da conversa, ia basear-me em quê?
- disse, escarnecendo - Não repararam nos agentes da PJ? Acham que vão fazer alguma coisa? Eles estavam alí porque houve fogo e deu muito nas vistas, senão nem tinham lá aparecido. São pessoas da delegação distrital e estão mais que comprados... na volta, assim que eu fosse fazer queixa, iam logo contar ao mafioso.
- Mas de qualquer forma, não podemos entrar no esquema deles de extorsão. Há-de haver uma saída qualquer disto. O atelier não tem que pagar pelos erros de um dos associados, bem basta quando temos responsabilidade técnica num projecto. E apesar de termos tido êxito no nosso caminho, não temos 'dinheiro em caixa' que satisfaça as suas exigências... que percentagem da empresa é que eles querem que compremos?
- perguntou Álvaro.
- Não sei. O que eles disseram é que ele investia 'à grande' no resort, mas pela conversa acho que ele é que fornecia dinheiro e conhecimentos para o tráfico de carne humana. O Vaz Dias deve gerir mesmo o 'resort' e o Andreev é que fica com a parte mais suja do esquema, apesar do dinheiro que o 'resort' faz, servir para os esquemas. O papel do Pascoal, não o sei.
- Isso são negócios demasiado obscuros para que nos metamos neles... isso deve implicar lavagem de dinheiro e tráfico de droga no mínimo, também.
- Álvaro, a minha vida está em jogo, aqui. E o atelier tem crescido com o meu trabalho também. Se eu desaparecer, perdem mais de 70% dos projectos, os factos são esses.
- Sim e se aceitarmos a chantagem, metemo-nos num esquema em que os lucros do atelier vão para actividades muito pouco ortodoxas, pelas quais, mais cedo ou mais tarde, ou teremos que responder por elas, ou nos enterraremos cada vez mais numa espiral descendente... e onde é que isso irá parar? Essa gente nunca para de querer mais e mais e mais... mais negócios obscuros, mais dinheiro sujo, mais podridão... Lamento, lamento muito mas todos nós aqui temos um bom nome a defender, representado pelo atelier, não posso aceitar. Eu não posso aceitar isso, não pactuo com criminosos.
- Eu também não pactuo com criminosos, e também tenho um bom nome a defender na praça. Mas também tenho a minha vida a defender acima de tudo. A chantagem foi simples: ou o atelier entra na sociedade do 'resort', ou... 'kaput' para mim.
- Vamos a votos então: quem vota a favor da entrada no 'resort'?
- ele levantou a mão - Quem vota contra? - Os outros três levantaram a mão. - Desculpa... lamentamos imenso mas não iremos ceder. Os russos são um problema teu. - disse friamente Lionel, sem olhá-lo nos olhos.
Ele baixou a cabeça, sentindo a sua vida a escorrer-lhe pelas mãos nesse momento. O Tempo ficou em suspenso. Um comboio que chegava à estação apitou ao longe. Ele respirou o mais calmamente possível e saiu do carro. Deu uns passos para apanhar ar, tentando recompôr-se e dirigiu-se-lhes:
- Meus senhores, a minha carta de demissão estará em cima das vossas secretárias amanhã. Desejo-vos as maiores felicidades pessoais e o maior sucesso ao atelier.
- Em nome do atelier, retribuímos esses votos. Espero que compreendas que não é nada pessoal... simplesmente...

Ele fez um gesto descendente com o braço como que dizendo 'sim, deixa estar... isso já não interessa...' e afastou-se em direcção ao carro.

***

No caminho para casa, e à medida que a estrada se desenrolava a seus pés, também a sua vida desfilava à frente dos seus olhos. A sua infância feliz, os anos da adolescência louca, o empenho e dedicação na faculdade, a vida académica... As namoradas que teve, as noites de amor em branco, o primeiro beijo, a primeira vez... O dia em que conheceu Esperança, o dia em que a convidou para sair, o dia que a pediu em casamento, o dia do casamento... e Selena. Selena que se atravessava no meio destas memórias como um trovão que rasgava os céus, a paisagem; Selena, a 'aparição' que lhe mudou a vida; o poço de sentidos que nunca imaginara possuir; os minutos de prazer que lhe invadiram o ser; as horas de conversa e a descoberta daquele espírito misterioso que se assemelhava tanto ao seu que lhe remexia as entranhas num misto de dor, espanto e atracção; os olhos de céu e mar que não tinham fim, que o afogavam, que o deixavam a nú; Selena, a mulher que lhe tinha despido a vida e que, não sabendo, o iria despir da vida. O sentimento de terror voltou a assombrá-lo. No meio daquilo tudo, a relação com Esperança era o menor dos males... E então, novamente, como um letreiro luminoso que surge ao fim da rua, a pergunta: se tudo estava bem com Esperança, porquê deixar-se levar por Selena? Porquê deixar sequer entrar Selena na sua vida, porquê envolver-se?... Comparou então estas duas relações, passo a passo, onde elas se equivaliam. E então foi-lhe óbvio. Esperança era tudo aquilo que ele era: calma, racional, dedicada ao trabalho e à relação, controlada, raramente deixava as emoções vir ao de cima tirando nos momentos de intimidade - estar com ela era o mesmo que se sentar num alpendre num fim de tarde, no campo: era reconfortante, ligeiramente melancólico, convidava a pensar e a apanhar o último calor do dia; Selena era aquilo que ele nunca julgara ser: impulsivo, tensão à flor da pele, sensualidade, emoção pura, desejo, o momento continuado e renovado, o oculto visível - a sua companhia lembrava-lhe uma tarde de Inverno, sentado numa rocha qualquer, num cabo qualquer à beira mar: o ar frio que disperta os sentidos, o sabor e o cheiro da maresia, o ruído incessante e expansivo das ondas a quebrarem-se contra a rocha, o sentimento de quietude intensa, mais, de pura liberdade, de todas as possibilidades. Como não se sentir atraído por isso? E como não desejar manter isso consigo?... Tivesse ele chegado a essa conclusão de manhã, provavelmente a despedida dela não teria sido isso, mas um 'até breve', e em vez de lágrimas, haveria mais um nascer do sol que era o seu sorriso...
Perdido que estava nestes pensamentos, nem reparou que a chuva tinha começado a cair e que não tinha ligado os limpa-párabrisas. Qual é a pressa afinal? A sua vida, tal como a conhecia, acabara; o fim dela, tal como o da viagem, era uma certeza cada vez mais próxima... como iria ele contar tudo isto a Esperança? como a preparar para o choque do que se avizinhava?...
"CLAAANG!"
- Eh lá, o que foi isto? - exclamou em voz alta, após o ruido que fora acompanhado de um solavanco.
"CLAANG!" Novo solavanco. Espreitou pelos retrovisores e viu duas luzes no seu encalço, que se aproximaram novamente em alta velocidade da traseira do carro.
- Merda, era só o que me faltava... - resmungou entre dentes. Acelerou para se distanciar do carro que o seguia mas o perseguidor conseguiu acompanhar bem o seu ritmo.
"CLAAAANG!". Outra pancada e solavanco. Desta vez foi bem mais difícil controlar o carro. O piso molhado não ajudava nada, assim como a chuva que caía. Ele tentou fazer algumas 'fintas' com o carro, esperando que o perseguidor perdesse o controlo e se despistasse.
"PANG!... PANG! PUUUM!!!" A parte de trás do carro saltou e ele começou a perder o controlo do veículo. Ainda tentou manobrar e travar mas já era tarde demais: saiu da estrada e foi contra uma árvore que ladeava o caminho. O 'air-bag' disparou e evitou o impacto contra o volante mas, quando tudo cessou, ainda ficou atordoado e quieto na mesma posição. Passado uns minutos, levantou-se, tirou o cinto, e saiu do carro.
Ao sair do carro, ainda atordoado, reparou no 'comité de boas-vindas' que tinha à sua espera: dois sujeitos altos, um de casaco comprido, outro de blusão de cabedal, estavam em frente a um carro de farois virados para ele: só conseguiu distinguir a sua silhueta contra a luz intensa. Comentaram qualquer coisa que não conseguiu perceber.
"Russo...".
Sentiu que a sua vida estava em risco. Afinal a sua vida teria um destino mais curto que o da viagem que estava a fazer.
- Eh... "Architektor"... - disse o do casaco comprido.
- Que querem? Acabar comigo? Dar-me um tiro nos cornos, é?? Força!!! Estão à espera de quê?? - gritou ele, arquejando de seguida...
- Cпокойно Aрхитектор! (Calma Arquitecto!)... Ninguém querer fazer muito mal... "ser" só "pequena" дар (presente) para lembrar que Andreev não "esquecer" de ti...
- Como poderia ele esquecer?... - resmungou ele.
- Eh гей Aрхитектор! (Arquitecto gay!) - cuspiu para o lado - "Teres" furo em два (dois) "pneu"... "Querer" "telefonar" Катар (reboque)? HAHAHAHAHA!...
-
Cпокойно Bадим (Calma Vadim)... донесение (recado) "estar" dado... Прибывает! (Anda!)
Entraram no carro e partiram... a chuva que tinha diminuido entretanto, aumentou de intensidade.
"Onde é que eu estou?... nem telemovel trouxe para não haver perguntas no fim-de-semana... estou perdido no meio de nenhures... O melhor é pôr-me a andar...". Caminhou pela berma da estrada durante uma hora e meia, duas talvez, até chegar à próxima localidade. "O melhor é perguntar a alguém onde é que posso apanhar o autocarro para casa e se me podem dar boleia até esse sítio.". Encontrou um café aberto e indicaram-lhe onde podia apanhar o autocarro, assim como onde morava o senhor que tinha o carro de aluguer. Assim fez e passado mais uma hora estava a apanhar o autocarro para a capital.
Durante a viagem, continuou a pensar na sua vida, em esperança e em Selena... reviveu acima de tudo a ultima noite, perguntando se tudo aquilo chegou a acontecer. "É claro que sim, estúpido! Senão não estavas encharcado, já estarias em casa, inconscientemente feliz com a tua mulher e com o teu emprego à espera amanhã. Assim, o que tu tens é um carro espetado contra um pinheiro, o sangue de um ordinário nas mãos, o desemprego, as malas postas à porta pela tua mulher e a máfia russa atrás de ti. Coisas parecidas, no fundo... céus!"
Chegado que estava à capital, não tendo sobrado muito mais dinheiro do que o que trazia consigo (tinha deixado os cartões de crédito em casa), decidiu apanhar o autocarro que o deixou a uns quarteirões de casa. A cada carro que passava, imaginava sempre que se iria dirigir para cima de si, a cada pessoa com que se cruzava, imaginava sempre alguém a sacar de uma arma para acabar com os seus dias... "Mais valia... isto não é viver...", pensou. Finalmente chegou a casa... antes de bater à porta, ficou a olhar para a casa, de sua autoria, sua criação, fruto do seu trabalho, do Querer dele e de Esperança. "E agora não tenho nada... também isso é fruto do meu Querer...". Na face, rios de água doce e água salgada corriam incessantemente, qual afluente de qual, era indiferente. E naquelas lágrimas, um mundo, uma vida, se escoava.

***

O sol nasceu, impassível como sempre. Para ele era indiferente que tivesse nascido ou não. Não foi durante a noite que as coisas se resolveram, a noite não apagou o que aconteceu, Galhardo nao ressuscitou, os russos não foram presos, o adultério continuava consumado, a vida continuava em perigo... Levantou-se antes de Esperança e foi-se lavar... era a imagem da Desgraça... não tinha ânimo, a sua Alma parecia já ter partido para o Outro Lado, era um Espectro... Ao pequeno-almoço, olhava para as coisas e era como se se estivesse a despedir das mesmas. Ele próprio achou estranho como nunca tinha percebido o quão fantásticas, únicas e, no entanto, irrisórias, pedaços de vaidade, eram aqueles objectos que tinha agora em mãos. Desejou que nunca se lhe apartassem das mãos, desejou não estar a olhar para eles uma última vez, já tinha saudades deles. "Será que terei saudades deles para onde eu vou?", pensou, olhando a colher do seu café. Esperança juntou-se-lhe, com um beijo de bons-dias. "Se soubesses, não me tinhas dado um beijo, mas sim com uma frigideira na cara... pobre inocente...". Enquanto ela falava do seu fim-de-semana, ele não a ouviu. Simplesmente pensava em como lhe iria dizer tudo o que tinha para dizer. Acabou por começar pela pergunta que ela lhe tinha feito no dia anterior. Pediu-lhe para que ela o ouvisse sem o interromper e que só depois lhe dissesse o que entendesse. Esperança assentiu, temendo pelo que aí viria.
Com uma calma que não esperava, ele descreveu tudo o que se tinha passado. Descreveu cada pormenor, cada sensação, cada olhar, cada gesto. Ela manteve-se fiel ao que prometera. Quando acabou, não houve lágrimas. Silêncio.
- Que vais fazer agora? - perguntou Esperança.
- Não sei. E tu, que vais fazer?
- Que queres que eu diga?
- Eu... ah... tu... - balbuciou ele. Só lhe saiam sons sem significado. Respirou fundo. - Sei que o que quer que decidas, será justo. Como te disse ontem, não tenho nada. Nem a ti.
- Amaste-la?
- Como??
- Se a amaste?
- Mas como? Foi só durante umas horas! Como a posso ter amado??
- É perfeitamente possível. Quem disse que o Amor só tem de aparecer semanas, ou meses, ou anos depois? O Amor pode surgir num segundo e desaparecer no segundo seguinte ou perdurar até morrer. Depende do que se quer, depende do que se aceita. Amaste-la?
- Primeiro desejei-a. À medida que a conversa se desenvolveu, senti-me muito próximo dela. Ela, como te disse há pouco, é um mundo oposto ao que tu és. Depois, acto final, as coisas fundiram-se.
- Então ama-la. Não pelos motivos pelos quais dizes que me amas, mas precisamente pelos motivos opostos. Amas o Ser e o Não-Ser. Amas a Realidade e a Fantasia, o que 'É' e o que 'Podia Ser'. Mas isso não é vida. Tens de escolher. Não sou eu que tenho de decidir o que fazer. És tu.
- Como poderemos viver com o adultério que cometi?
- A pergunta, meu querido, é: "Como poderei eu viver com o adultério que cometi?". Eu não tenho nada a ver com isso. É que, no fundo, não me traíste: não me trocaste por outra como eu, não trocaste por alguém que me ameaçasse, por alguém Real, alguém aproximado ao que tu já tinhas, trocado por uma impressão de Amor, por um Demiurgo. Cedeste a um Não-Eu, a algo que não sabias que existia, a algo fora deste Mundo. A resposta, agora, é tua. - Beijou-o suavemente e saiu da cozinha.

***

Mais tarde, ligou para Vaz Dias e transmitiu-lhe o que os seus ex-associados tinham decidido. Precisava de falar com ele e os seus dois sócios para chegarem a acordo com uma solução.
- Onde nos podemos encontrar? - perguntou Vaz Dias.
- Podemos encontrarmo-nos num Jardim do Sol Nascente, aqui na capital. Infelizmente os... 'amigos' do seu associado russo são muito assertivos a darem recados e lembretes pelo que não tenho transporte agora.
- Muito bem, creio que não haverá problemas. Poderemos encontrar-nos amanhã... digamos... 16 horas?
- De acordo. Vemo-nos amanhã então. O resto de um bom dia, dr.
- Um bom dia também para si, sr. Arquitecto.
No dia seguinte, às 16h, numa zona arborizada, isolada o suficiente mas à vista das pessoas, sentaram-se à volta de uma mesa disponível no parque.
- Então sr. Arquitecto?... que tem para nós?
- Bem, como já lhe tinha dito ontem, os meus sócios não aprovaram a ideia da participação accionista e financeira do 'resort'. Por vias disso, também me encontro sem emprego.
- Uma situação... assaz lamentável, sr. Arquitecto. Mas creio que não nos teria feito vir até aqui se não tivesse um plano alternativo, estarei errado?...
- De facto, não está. Felizmente para mim, tenho ainda um nome forte na praça. Deduzo que o assassinato do dr. Garrido seja 'abafado' por quem de direito, não é? - questionou olhando para Andreev.
- Assim é. - respondeu Vaz Dias.
- Bem, tendo em conta que a minha reputação não será afectada, mais para mais estando longe do local onde tudo se passou, estou disposto a começar um novo atelier de arquitectura. Sei que alguns dos meus colaboradores estão dispostos a juntarem-se à minha nova equipa e será apenas uma questão de tempo até que o dinheiro comece a surgir. Este novo atelier seria o vosso novo accionista e financiador, colaborando ainda na reconstrução e, quem sabe, ampliação do 'resort'.
- Uma medida... audaz, sr. Arquitecto. Mas quem nos garante que não está apenas a tentar ganhar tempo para reunir dinheiro suficiente e meios para se ausentar do país?
- Dou-lhe a minha palavra de honra. Sei que a alma russa é... incansável a cobrar as suas dívidas.
- De facto, assim "ser" - grunhiu Andreev - "Nenhuma" local na "mundo" ser suficientemente seguro para esconder.
- Imaginava que assim fosse. E eu prefiro comprometer-me estando, de certa forma, mais tranquilo, do que passar a minha vida a fugir, com a casa às costas. Entre passar a Vida com medo e darem-me um tiro agora, a diferença, a meu ver, é nula - isso não é viver. Se têm dúvidas de que a minha palavra poderia ser insuficiente, aqui ficaram as razões subjacentes. Que me dizem?
- Dê-nos só uns minutos... precisamos de... conferenciar entre nós. - pediu Vaz Dias.
- Com certeza.
Ele afastou-se e foi apreciar o dia e o Jardim. Era das poucas oportunidades que tinha para ver um dos seus projectos, usufruir de um deles. Tinha sido um feliz pedido da autarquia e tinha sido um desafio e um prazer tê-lo concretizado. Passados uns instantes, Andreev chamou-o.
- Então? Que me têm a dizer?
- Caro sr. Arquitecto, creio que a sua ideia tem bases para andar. No entanto... há ainda a questão do financiamento das obras do salão Noir...
- Como já lhe disse, terei todo o gosto em participar na reconstrução do salão, não só restaurando, como também melhorando-o, aumentando as suas potencialidades. Podem ir pensando no que gostariam de ver no terreno.
- Certíssimo, já tínhamos ouvido isso há pouco. A questão não é essa: a questão é, quem é que vai pagar a execução.
- Bem, sendo eu o arquitecto responsável, creio que poderei também estimar os custos. No entanto, pelo que eu já vi e pelo que eu já estive a pensar, creio ter o capital suficiente para... "oferecer" a obra ao 'resort' como compensação.
- Nesse caso, creio que aceitaremos esse seu... gesto de boa vontade. Estivemos também a discutir e creio que nos será mais útil a oferecer-nos mais projectos e execuções do que entrando no capital do 'resort'. Sendo assim, creio que é mais vantajoso sermos nós a entrar como seus sócios no capital do seu futuro atelier, no papel, como é evidente. Confiamos no seu bom nome e reputação que tem na praça para nos trazer muitos... dividendos. É claro que será só o senhor a entrar com o capital necessário para abrir o atelier... já basta o prejuizo que o senhor nos causou. Além disso, será uma forma de o seguirmos mais perto... e ao seu trabalho... - disse, esfregando as pontas dos dedos, como habitual.
- Ou seja, no fundo, irei trabalhar para vocês... com rédea curta...
- No fundo ou à superfície, é como quiser. Ou antes, como nós quisermos. - disse o dr. Pascoal.
- E "dar"-se muito por feliz por não ir fazer Кирпичи... uhnn... "tijola"... - acrescentou Andreev.
- Sendo assim, sr. Arquitecto, desejamos-lhe o maior dos sucessos na sua nova... empreitada e etapa da sua vida. Tenha um bom resto de tarde e de dia. Até breve. - despediu-se, cordial como sempre. Os restantes sócios despediram-se igualmente, menos cordiais.

***

Animado por este desfecho, tinha a mente mais clara para fazer a escolha que Esperança falara. Por um lado, a sua reacção ao que se tinha passado tinha-o deixado espantado: nunca pensou que ela fosse tão calma perante revelações daquele calibre como demonstrou ser. Por outro lado, essa frieza assustava-o, era uma frieza que mascarava bem demais o Amor que dizia que ela tinha por si. Foi talvez por isso que Selena o tinha encantado tanto: o que viu era o que ela era... mas quem o saberia?... O desgaste causado pelos anos de casamento também não ajudava muito. Nesse aspecto, se escolhesse o Real, concluiu que tinha de trabalhar mais na relação para que esse desgaste um dia não se virasse um dia contra si. Mas, depois de um fim de semana em que tanto mudou, tinha aqui a oportunidade soberana de iniciar uma nova vida também nesse aspecto. Com certeza que Andreev saberia como contactar Selina e trazê-la para a capital não seria difícil. Mas, quem lhe disse que, daí a uns tempos, os olhos de céu e mar não se tornariam demasiado cinzentos para poder mergulhar neles, sentindo-se, ao invés, a afogar-se desesperadamente?...
Estava a chegar a casa. E estava também a perceber que a Felicidade era uma coisa muito, muito relativa. Há uma semana, a casa, o trabalho, o casamento, tudo lhe era comum, garantido, aborrecido até... numa noite e um dia, tudo isso tinha mudado. Foi como se o fogo do salão Noir tivesse queimado toda a sua vida, como se fosse um fogo purificador, renovador, um fogo que o queimou até ao fundo da alma; foi como se a chuva que apanhou no caminho para a aldeia, tivesse lavado as cinzas que o fogo tinha deixado, limpo os seus olhos e deixado apenas o essencial. As escolhas, agora, eram mais fáceis de fazer, era mais fácil recomeçar. E entre o Real e o Ilusório, ele não já tinha dúvidas. Mais do que uma escolha lógica, prática, imediata, era uma escolha feita pelo seu Ser, uma escolha tomada naquela magnífica ligação Espírito-Coração-Mente. Ele, mais do que nunca, escolhia poder escolher.

3 de agosto de 2009


That's what Hell is: it's forgetting who you are.
Eric Kripke, 2009

(le suivant...)

Chegando a casa, Esperança mal conseguiu reconhecê-lo. Na sua face, a desolação e tristeza eram evidentes, mas era o choque que mais distorcia o rosto dele. O seu ar derrotado, chocado, o corpo encovado como que cansado depois de uma batalha, não tinham uma explicação lógica aos olhos de Esperança.
- Querido!... que foi que se passou?
Ele fez um gesto desprovido de significado, apenas acenando no ar, continuando a cambalear em direcção à sala.
- Estás encharcado! Tens de te trocar!! Queres apanhar uma pneumonia? Que se passou?? Diz-me!!
- Perdi... perdi tudo... as luzes... a confusão... os sócios... - sussurrou ele, olhando no vazio. Levantando as mãos e olhando-as, concluiu: - Tudo o que fiz... perdido... não temos nada... não tenho nada... - e, levantando os olhos - nem a ti, Esperança...

Calçou as botas e afivelou o cinto, ajustando a cimitarra à cintura. "Estes turcos sabiam o que faziam!", pensou, enquanto manejou um pouco a espada, golpejando o ar. "Esta espada é extraordinariamente fácil de manobrar, é leve e parece ser bastante robusta! Num corpo-a-corpo, a curva ajusta-se perfeitamente ao movimento do golpe no adversário. Eles não se deviam cansar muito nas batalhas...". A roupa, extremamente confortável, permitia um grau amplo de movimentos, ao mesmo tempo que mantinha a temperatura do corpo a um nível bastante agradável. "Não é grande fantasia, mas é algo diferente... um pouco como esta festa... Resta saber o que é que o Futuro reserva...". Saindo, fechou a porta à chave e dirigiu-se ao salão Noir.
Pelo caminho, encontrou Cláudio. Vinha vestido de Júlio César, devidamente coroado com uma coroa de louros e com um equipamento de General do Exército Romano: sandálias de couro, a túnica imperial púrpura atada à cintura, a armadura peitoral modificada de um General Romano, dourada, decorada com alto relevo, um Gládio com punho trabalhado e uma capa da mesma cor da túnica.
- Isso é que é luxo! Onde é que encontraste isso?
- Um tio meu é historiador e gosta de fazer reconstituições históricas. Ele conhece pessoal que trabalha em estúdios, na parte de adereços, e eu perguntei se por acaso não tinham um fato de Júlio César. Por acaso tinham! -
disse sorrindo amplamente.
- Bem, isso é que é sorte! Comparado com os meus "trapinhos"...
- Mas a tua fantasia de mouro não está mal também... pena que os meus conhecimentos de História estejam um pouco enferrujados... quem é que é suposto seres?
- Mehmet II, Sultão dos Turcos Otomanos, conquistador da capital do Império Bizantino, Constantinopla, em 1453. Uma fantasia simples mas, certamente, diferente.
- De facto, é diferente! Ao menos não vens de Sandokan! HAHAHAHA!!

Dirigiram-se então, juntos, ao salão Noir. Ao longe já se ouvia música e o riso alto dos convivas... parecia haver mais pessoas para além deles os quatro. Sabiam que o 'resort' não estava reservado só para eles mas não sabia que os outros hóspedes iriam à mesma festa.
Quando entrou, por entre cortinas, o cenário com que se deparou era, no mínimo, surreal, uma cena quase dantesca: para além dos fantásticos candelabros, um pouco deslocados no estilo em relação á restante decoração, uma quantidade profusa de tecidos suspensos do tecto, correndo pelas paredes, cobrindo-as, assim como ao chão, tornava a sala inteira numa tenda de proporções quase épicas. Imensas almofadas encontravam-se pelo chão, outras ainda maiores serviam de assento para alguns dos convivas que já se encontravam dentro da 'tenda'. Dos seus correlegionários, ainda não se encontrava lá ninguém. Passaram por dois jovens negros, musculados, que se encontravam à porta, trajados num estilo egípcio, zelando pelo acesso ao espaço. Os outros convivas falavam animadamente entre si, espreitando por cima do ombro ocasionalmente, como que certificando-se que ninguém, que os conhecesse, estivesse presente.
- Quem é esta gente, Cláudio?
- Pessoas como nós... mas com muito mais "papel". São pessoas que nunca aparecem nas revistas cor-de-rosa, nas colunas dos jornais, na televisão, senão muito fugazmente, muito de tempos a tempos, e só quando eles lucram imenso com essas... aparições. Eles 'certificam-se' que assim é.
- As pessoas que realmente detêm o poder no país, certo?
- Sim, feliz ou infelizmente, sim. De qualquer forma, é gente com a qual não te queres meter, de certeza. Têm temperamentos muito... complicados... Para além que os gostos deles são bastante... diferentes.
- Diferentes? Como assim?
- Diferentes... tu vais ver... Olha, vem aí o Álvaro.

Dirigiram-se entao ao colega e começaram a trocar impressões sobre aquele início de noite. Álvaro vinha vestido de Gengis Khan, uma fantasia que lhe assentava bem visto que, não tendo muito cabelo e com uns olhos relativamente mais amendoados que o resto das pessoas (não chegando a ser completamente asiático), se assemelhava vagamente a um mongol... só faltava a pele acobreada. Minutos mais tarde chegou Lionel, num fantástico fato de Frederico I, o "Barba Ruiva", Sacrossanto Imperador Romano, de armadura milanesa completa e espada cingida à cintura. Gabou os restantes colegas afirmando mesmo que estaria ali a melhor colecção de conquistadores da História.
- Olha que não Lionel... então e o Imperador Augusto, Alexandre o Grande, Ataúlfo o Franco, Ramsés II, Saladino, Ivan o Terrivel?... Acho que estamos muito longe das marcas que eles deixaram na História.
- Sim, mas ninguém mudou tanto o mapa, ou "agitou a jaula" como os que estamos a representar.
- Por acaso ainda hesite se não havia de vir de Carlos Magno mas ele não foi propriamente um Conquistador, foi mais um legislador, um gestor. Travou algumas batalhas com vizinhos mas nada que se assemelhasse a uma conquista. Isso tinha sido feito pelo seu avô Clóvis, o verdadeiro fundador da França
.
De subito, soou um gongo e todos os convivas se viraram para o sítio onde soou.
- Meus senhores!! Meus senhores, por favor, a vossa atenção! A nossa festa vai começar! Por favor escolham os vossos lugares!! Obrigado!!!
Um restolhar de tecidos e metal tomou imediatamente conta do lugar e os convivas começaram a sentar-se ou a reclinar-se em cima das almofadas enormes dispostas para o efeito.
- Ó pessoal, digam lá que isto não é um luxo? - disse Cláudio - Ainda melhor do que da última vez. Estes tipos são como o vinho do Porto...
- Calma, Cláudio, calma que isto ainda nem começou! Já estás a mandar 'tiros' para o ar porquê? A comida pode ser pior! E os 'extras' podem não ser tão bons como da outra vez...
- replicou Álvaro.
- Extras? Que extras?
- Calma, 'caloiro'... espera e verás. Hehehe...

O repasto começou e foi tudo o que esperar e muito mais. Delícias dos cinco cantos do mundo desfilaram à sua frente, uma selecção dos melhores nectares foi posta à sua disposição, tudo servido por um conjunto de raparigas e rapazes vestidos apropriadamente: eles, de tronco nu com umas calças de linho largas, em balão, sandálias e cintos dourados; elas, como cortesãs de um harém, com lenços e túnicas de cores intensas. A beleza de uns e de outros era visível e os convivas lançavam olhos cheios de cobiça e de desejo.
- Continuo a achar que este ano está melhor que a última vez. - falou Cláudio, quase sem espaço na boca com tanta comida.
Findo o repasto, outro conjunto de criados entrou com toalhas humedecidas para os convivas se limparem, seguido por outro grupo com algumas mesinhas e carrinhos de licores, conhaques e outras bebidas espirituosas. Os convivas iam tirando e escolhendo, enchendo várias vezes os copos. Começou-se a ouvir cantorias alimentadas a álcool e o ruído dentro do espaço aumentou significativamente. Mais tarde, recolhidos os copos, as luzes começaram a baixar e uma outra musica começou a soar.
Era uma música estranhamente hipnótica, de tonalidade ligeiramente oriental, com laivos africanos no ritmo, melodias antigas de encantos perdidos, agora claramente recuperadas. O canto de uma mulher surgiu, como que por magia, e seguiu-se-lhe o de um homem, alternando-se e, finalmente completando-se. Ele olhou à volta, para os colegas e restantes convivas. Uns, já estavam desmaiados pela quantidade de bebida que ingeriram, outros estavam meio sonolentos, e outros ainda estavam com uma expressão como se estivessem entre dois mundos, o da fantasia e este, sem saberem muito bem em qual deles acreditar. Nem ele próprio sabia bem em que mundo estava, pois o efeito das luzes, os cheiros que estavam no ar, a música de mundos místicos, tudo, no seu conjunto, criava um efeito de profunda ilusão. Uma cortina entreabriu-se e um grupo de bailarinos de ambos os sexos surgiu no espaço disponível. A sua dança era o complemento perfeito à música que se fazia ouvir: mística, hipnotizante, sensual, uma miscelânea de corpos semi-nus que se perpassavam, fundiam, cindiam entre luz e sombras, aromas no ar e movimentos que alternavam o rápido e o lento. A música acelerava de ritmo e subia de tom, gradualmente. "Isto parece uma cerimónia de um culto perdido, quase!...", pensou ele, com a pouca razão que lhe sobrava depois de minutos sob o efeito enfeitiçante do espctáculo que se desenrolava sob os seus olhos. Os corpos moviam-se com maior velocidade, em movimentos claramente sexuais, perdendo os trajos à medida que se movimentavam. Havia mais fusão entre os corpos, do que cisão, e os suspiros começavam a ouvir-se em simultâneo com a música; os cantores evocavam agora um mantra antigo, nitidamente hindú, que repetiam incessantemente, cada vez mais alto. Sem se dar conta, de olhos bem abertos ao espectáculo, também ele começou a evocar o mantra e sentiu-se mergulhar ainda mais num estado de relaxe profundo mas mantendo a atenção ao que se passava à sua volta; sentia-se excitado com tudo, vivendo um paradoxo sensorial entre o êxtase frenético e a total paz de expírito. Foi então que a música, que, tendo atingido o seu climax, começou a perder força, os bailarinos começaram a perder a energia e a movimentar-se cada vez mais lentamente, numa dança cada vez mais suave, mais terna, mais espiritual. E assim todos os sons e movimentos se esfumaram, quase sem se dar por isso, com a luz a convidar à meditação, ao conforto, às conversas a meia-voz, aos segredos evocados a meio da noite e que se perdem nos tempos.
O bailarinos sairam e, no seu lugar, surgiram homens e mulheres completamente despidos, trazendo na mão cálices. Puseram-se em linha e surgiu então outra figura, que se dirigiu aos convivas:
- Excelentíssimos senhores, creio que a grande maioria das pessoas aqui presentes sabem o que se vai seguir. - disse num esgar malicioso - No entanto, aos que nos honram com a sua presença pela primeira vez, passarei a explicar: este fim de semana é um fim de semana dos sentidos. Tudo aqui é feito para estimular cada sentido que o ser Humano possua, para estimular todas as sensações possíveis... de preferência as boas. Queremos oferecer aos nossos convidados a experiência sensorial mais plena que possa existir e é por isso que, depois da comida, da bebida, da música e da dança, temos aqui estes senhores e estas senhoras para vos fazerem... companhia o resto da noite. Tudo é permitido, pois os sentidos humanos são livres, e livre de complexos tem de ser esta noite. Atrevam-se a ir mais além do que o costume, atrevam-se a serem diferentes, a pensar diferente, atrevam-se a transcenderem-se, atrevam-se a serem... mais!
Com isto deixou a sala meio iluminada e os primeiros convivas levantaram-se para ir escolher o seu parceiro ou parceira. Ele estava de boca aberta com tudo isto.
- Cláudio! Será isto possível?? O que é que é suposto fazermos com estas pessoas??
- O que é que tu achas, ó cordeirinho?? É obvio que é para fazeres o que bem entenderes!! Conversar, beber, tocar, dançar, lamber, bater, foder, seja o que for! Ah rica noite!!
- disse Cláudio, esfregando as mãos.
- Mas... pelo menos nós, somos todos casados... e bem casados! Nunca vos ouvi mencionar sequer a hipótese de atraiçoarem as vossas mulheres!
- Isso é porque temos estes fins-de-semana de tempos a tempos! Se não tivessemos isto para quebrar a monotonia do casamento, acredita que não só já nos tinhas ouvido falar, como também fazer! Vá lá, relaxa pá! Levanta-te e vai buscar uma... ou um... o que quiseres mais vai lá e escolhe!
- Não sei que fazer... eu amo a Esperança, profundamente... não sei se sou capaz de fazer isso, de 'lhe' fazer isto...
- Desisto! És um caso perdido... então olha, quem vai ao ar...

Ficou a olhar para Cláudio enquanto pensava no que fazer. Seguramente, ele desejava outras mulheres, e as que estavam presentes eram de primeira água. Mas nada disso justificava qualquer loucura, qualquer acto impensado que o levasse a arrepender-se amargamente. E sim, ele sabia que se iria arrepender amargamente se o fizesse. Apesar disto, as palavras do cicerone ecoavam na sua cabeça...
Levantou-se. Dirigiu-se à mulher que lhe chamou a atenção assim que entrou na sala. Tinha o cabelo escuro, volumoso e liso, quase pelos ombros, quase estilo 'garçonne'. A cara era ligeiramente oval, lábios médios, como que gentilmente desenhados, com uma linha de maxilar e maçãs do rosto que lhe eram extremamente apelativas, nariz finamente talhado, ligeiras rosáceas na cara e os olhos... ele prendeu-se àqueles olhos no instante em que os viu: expressivos, com luz própria, com dois lagos que a espelhavam para onde quer que olhasse. O seu jeito ligeiramente tímido com que segurava o cálice, era enternecedor, e empatizou com ela, pelo que se lhe dirigiu. Esboçou um sorriso e apresentou-se.
- Chamo-me Selena. Não é o meu verdadeiro nome mas para esta noite deve chegar. - disse sorrindo suavemente. Era um sorriso encantador, não esforçado, não trabalhado, genuíno e sincero.
- Quer vir sentar-se comigo? Só para conversar um pouco...
- Com certeza, é para isso que aqui estamos. Vamos?
- Dirigiram-se ao lugar em que ele estava anteriormente.
- Já sei que é escusado fazer perguntas de caracter pessoal, imagino que se queira proteger. Por isso pergunto-lhe simplesmente, o que faz num lugar destes?
- Num lugar destes?... Não é um lugar muito mau. Isto que está a ver decorrer não é assim tão frequente, apenas uma vez ou outra por ano. No entanto, aquilo que ganho em aqui estar vale por um ano de trabalho regular. Não querendo dizer muito, posso-lhe dizer que não sou prostituta ou acompanhante de luxo no dia-a-dia. Soube disto por intermédio de outra pessoa, que já participou nisto. No entanto tenho uma vida bastante difícil. E este dinheiro vem mesmo a calhar.
- Então, mas se tem uma vida assim tão difícil, e sendo assim tão bela como é, não lhe seria fácil encontrar alguém com posses, que a pudesse tirar desse mundo?
- Infelizmente para mim, eu tenho valores morais e sei o que o meu coração pede. Não me vou casar com ninguém senão por Amor. É claro que se tiver uma carteira recheada, melhor!
- riu brevemente - Mas não sou nenhuma interesseira.
Selena deu um breve trago no seu cálice e ofereceu-lho, delicadamente. Ele recusou com educação.
- Que é que o cálice tem? Porque é que trazem os cálices?
- É uma questão estética mas também de segurança e de higiene. Há convidados com manias muito estranhas, mas mesmo estranhíssimas! Então, para nos protegermos, trazemos este para nós, sendo livres de partilhar o que bebemos com quem nos escolher. Mas temos de o manter sempre connosco. O meu tem uma selecção de sumos de fruta, com um toque de 'crème de cassis"... e um ingrediente para me deixar mais desinibida. Como lhe disse, não sou uma profissional. Tem a certeza que não quer?
- Bem, sendo assim, acho que vou dar um trago... Hmmm... óptima escolha!
- Obrigada! Não é nada de especial mas eu gosto muito.

Continuaram a falar pela noite fora. Ele observava de tempos a tempos o que se passava: haviam pessoas que se tinham posto imediatamente a ter sexo, outras demoraram mais, outras ainda pediram que lhes fossem facultados diversos acessórios, outros ainda estavam a ter sexo em grupo e chegou mesmo a ver práticas muito pouco ortodoxas. Tudo se passava ali, à vista de todos, sem tabus, sem receios. O mundo desaparecia assim que começavam a conversar, seja com que intuito fosse. "Há gente com cada mania...". A conversa com Selena continuou e descobriu nela uma mulher extremamente atraente também do ponto de vista emocional e intelectual. Trocaram impressões sobre tudo, desde a mais banal trivialidade até ao assunto cultural mais especializado. A certo ponto, ele disse:
- Sabe, depois desta noite, quase que tenho pena de não ser solteiro. Você é uma pessoa deveras especial.
- Você também!... Não é qualquer um que se dispõe somente a falar uma noite inteira, resistindo a uma mulher nua que assume que é belíssima. Palavras suas!
- disse, rindo-se.
- Pois é... mas a vida tem destas coisas e escolhi o meu caminho desta forma. Sabia que escolhendo assumir um compromisso com a Esperança, não olharia para outra mulher da mesma forma que ela.
- Esperança... belo nome! E que espera ela?
- Não sei... acho que espera o que, no fundo, a maioria dos seres Humanos espera: ser feliz. E eu tento proporcionar-lhe essa felicidade, o melhor que posso. É uma pessoa extraordinária. De certa forma, você faz lembrar-me dela...

A quantidade de sons lascívos, excitados, de gritos e gemidos, foi aumentando de frequência e de intensidade. Ele próprio estava a ficar um pouco excitado com a atmosfera que se fazia sentir no salão Noir. Olhou em volta, viu que alguns pares ja tinham saído, outros permaneciam no local, outros dormiam já. ou continuavam a dormir, conforme tivessem desmaiado da bebida, ou dormissem o sono dos amantes.
- De facto, isto aquí é de out...
Ela silenciou-o com um beijo. Ao início, apanhado de surpresa, ficou surpreendido e pensou em fugir mas algo o fez aceitar. Os seus labios eram perfeitos e o beijo soube-lhe divinalmente. Lentamente, muito ao de leve, tocou-lhe na coxa desnuda com a ponta dos dedos, sentindo-a. Era suave, uma pele de pêssego, lisa, imaculadamente lisa, optima de se sentir. Quis mais. Apoiou a mão toda na perna e com a mão livre, abraçou-a, aproximando-a para si num gesto terno. As suas costas eram igualmente sensuais, com ombros ligeiramente largos, a pele de toque semelhante à das pernas, mais suave ainda, firme ao toque, suaves as curvas. Ela, com as mãos ia-lhe tirando o colete e a camisa de seda, desnudando-lhe o peito. Simultaneamente, ele explorava já o seu peito, doce, com firmeza natural, mamilos absolutamente perfeitos, rosados. Descia suavemente, beijando-lhe o pescoço com doçura, num gesto apaixonado, passando para o peito, apreciando a suavidade da sua pele nos lábios, o seu doce perfume a brisa campestre numa manhã primaveril. Quanto mais a percorria, mais a desejava. Ela, por sua vez, acariciava-o suavemente e suspirava...
- Mais... isso... ahh... (suspiro)...
Desceu mais, beijando-lhe o ventre, sentindo cada centimetro da sua pele, sentindo-a vibrar de prazer. Não iria já dar-lhe tanto prazer, voltou para cima, beijando-a apaixonadamente. Ela desapertou o cinturão com a cimitarra, atirando-a para longe e desabotoou-lhe as calças de sultão...
- Não queres ir para o quarto?... Lá estávamos mais à vontade... - perguntou Selena.
- Só mais um pouco... antes de ir quero fazer vir-te toda...
- Hmmm... soa-me muito bem...
- e continuou a despi-lo lentamente.
Ele desceu a sua mão, mergulhando-a por entre as pernas, tocando-lhe, sentindo-lhe todo o sexo. Estava completamente molhada. Indo um pouco mais fundo, penetrou-a com os dedos, sentindo-a perfeita, vibrante. Selena gemeu de prazer e segurou-lhe no pulso, mantendo-o no sítio. Com um movimento firme e regular, penetrou-a sequencialmente, sentindo sempre a deliciosamente molhada. Alternando os movimentos entre a vagina e o clitóris, ela gemia cada vez mais...
- Sim, aí... ahhh, tão bom... isso... simmm.... mmmm... - Sentia-a vibrar cada vez mais, ela ardia de excitação - Entra em mim, quero-te já!
- Não, ainda não... aqui não...
- Ahhh... não me digas que não!... és um sacana...
- O climax aproximava-se e Selena mordia o lábio do prazer em que mergulhara sem rodeios - Mais rápido... sim... sim... mais fundo, mais forte.... ahh... ahhhhh... - Num estertor de prazer silencioso, entregou-se ao orgasmo que a percorreu frenetica e intensamentemente. A sua face era êxtase, o seu corpo era o Prazer encarnado. Lentamente desvaneceu-se, mantendo-se apenas o sorriso, descobrindo os profundos lagos da sua cara, que brilhavam intensamente.
Deixaram-se estar assim, lado a lado, abraçados, durante uns minutos, até que ela se virou para ele.
- Eu vim aqui dar prazer aos convidados... nunca pensei que quem viesse a ter prazer fosse eu! - disse, meio espantada.
- Tem calma, a noite ainda é uma criança! - riu-se e piscou-lhe o olho.
- E tu nem imaginas o que tenho reservado para ti. Vais desejar que eu nunca pare de te...
Foi interrompida bruscamente por um encontrão de um conviva, claramente bêbado, que cambaleava para trás, vociferando:
- PUTA DO CARALHO!!!... Não me queres lamber o olho do cu??... Estás aqui para quê, afinal???... Dei eu dinheiro para quê???... estás a gozar comigo, cabra de merda??... eu já te fodo, sua puta... já vais ver o que te faço...
- Não... não foi isso que eu disse! Nada disso!... Tenha calma... tenha calma, por favor...
- disse uma garota, morena, de formas bem arredondadas, com um ar um pouco mais novo que Selena.
- Foi, foi isso que disseste!! Eu disse-te: mama-me a picha, lambe-me os colhões e depois lambe-me o olho do cu!... e tu fizeste uma cara de nojo... quando lá chegaste abaixo levantaste-te de repente como quem ia vomitar... meto-te nojo, vacarrona do caralho??? Hã, porca??? Vou-te fazer como eu faço aos meus cavalos quando já não me servem p'ra mais nada!!!
Agachou-se e pegou na cimitarra que ele tinha trazido para o festim, desembainhando-a.
- Que bela faquinha, hein?... Anda cá puta!! Agora vais lamber isto!! Anda!! Lambe isto!!!!
A garota afastou-se mas foi agarrada por quem parecia ser os acompanhantes do exaltado e embriagado gordo.
- Estás a fugir, 'docinho'? - disse, fazendo boquinhas, ao chegar-se ao pé dela. - Não te vou fazer mal. O paizinho nunca faz mal a ninguém. Só queria que desses uns beijinhos na pilinha e no rabinho do papá, mais nada...
À medida que ele se aproximava, a garota tremia e debatia-se com cada vez maior intensidade. "Aquela é a minha cimitarra! Se aquele gordo estúpido lhe faz alguma coisa com aquilo, eu é que estou completamente fodido!", pensou, em pânico. Levantou-se repentinamente e gritou-lhe:
- Ó palhaço! Vê lá se devolves a 'faquinha' a quem pertence!!
- Tás a falar comigo, ó puto?... Queres o brinquedo, é?... Tem calma que já to dou... só vou dar uma lição a esta ordinária, por me ter desobedecido...
- Tu aqui não dás lição nenhuma, ouviste??
- Olha olha, o passarinho já pensa que canta de galo!... És um chico esperto?... Repara no que é que eu faço aos chicos espertos!
- e, sem contemplações, lançou a cimitarra na sua direcção. Ele, prevendo que faria tal coisa - "Bêbados só têm ideias de merda e gordos não gostam de se mexer muito, logo ele ainda me vai atirar aquilo" -, lançou o manto que pertencia à sua fantasia, acompanhando o movimento da lâmina, amortecendo-a. Enquanto isto, o gordo tinha avançado na sua direcção e tinha-o golpeado nas costas com o punho, atirando-o ao chão. Ele, apanhado de suspresa, tentou orientar-se virando-se para cima e só teve tempo de se desviar de mais um murro do peso pesado. Falhado que estava o golpe, o gordo desequilibrou-se e caiu redondo em cima da lâmina que ficara no chão, exposta.
Selena gritou e fugiu pela cortina por onde tinha entrado horas antes. A confusão estava lançada e todos os ocupantes daquele espaço procuraram fugir o mais rápido possível. Pessoas atropelavam-se umas às outras, os espíritos mais esclarecidos tentaram acordar os que dormiam o sono de Baco... mas nem todos foram acordados. No meio do caos instalado, algumas tochas cairam no chão e, quase instantâneamente, o fogo alastrou-se pelos panos que estavam montados no salão Noir, assim como às almofadas que estavam dispostas no chão, criando um braseiro impossível de ser suprimido. Lá fora, quem tinha escapado, e já se encontrava recuperado, observava o terrível e assombroso espectáculo que se tinha gerado. A noite dos Sentidos esfumava-se num pesadelo infernal...

(à suivre prochainement...)