17 de novembro de 2007

" - Posso bem dizer isto sozinho. O amor humano é um acto de solidão. Falarei sozinho. Vi-te a primeira vez no corpo de outra mulher, o nosso amor é uma série de acasos, encontros e desencontros, aparece nos olhos desta, nas palavras de outra, nas carícias e ternura de uma outra... Vive, cresce, enriquece-se de semelhantes contrastes, sedimentos, memórias, repulsas, ódios, amarguras, desesperanças, todas elas casuais, inesperadas... É como um feto: rola no calor vazio do mar uterino até tomar forma, definir-se entre homem e mulher, leva tempo, uma vida interior a nascer - as mães é que sabem. Até nascer, inteiro e perfeito, definido. E quando isso acontece, quando já sabemos tudo dele, está pronto para morrer. Amei-te no corpo doutra, talvez fosse já o teu corpo a saudade doutro ou um outro corpo onde juntei tudo, tudo, dos corpos que conheci. Amei-te muito, ah! sim, amei-te muito e sei-o porque te amo ainda. No meio da desesperança e do medo, qualquer coisa há e sobe acima das nossas cabeças, dá sinal de nós lá mesmo onde não ousámos chegar, donde desistimos, ao cimo no mais alto, onde as nossas mãos não tocam e o barulho dos nossos gritos mal pode ouvir-se... Aí, lá no alto,está o nosso amor - pobre, ferido, sujo, humílimo embora, e tão cheio de medo, tão apavorado, tão frágil. Como um papagaio de criança, que golpe de vento derruba no chão, ou a falta de vento lhe corta o voo, ou a um gesto irreflectido do menino que segura a guita se estatela, partido, sobre as árvores, os muros, além. Amo, logo existo. Essa é a grande verdade. Mas tão frágil este amor, tão mesquinho, tão dependente das coisas. Tão torturado. Como o amor de mãe, tal e qual como o amor de mãe: parece forte e eterno e um dia, um dia como ainda não houvera outro assim, vamos beijar a nossa mãe à cama, como todas as manhãs desde crianças, dar-lhe os bons-dias, e ela já lá não está. Dizemos «bom dia, mãezinha» e não nos responde, olhamo-la calada e quieta e não percebemos, nos seus olhos abertos há uma tristeza tão grande, tão vazia e tão calada, uma tristeza como nunca víramos outra assim, uma tristeza que já não é para nós, que não tem nada a ver connosco, sem irritação, sem mágoa, sem zanga, sem dúvidas, mas parada e vazia, ausente, alheia, calma. Uma tristeza imperturbável e altiva. Olhamos a nossa mãe e pela primeira vez temos medo. É já uma outra pessoa, hostil e calada, uma coisa imunda que se afaste e repele, nos dá vontade de fugir. E a pergunta que eu agora lhes faço, a vocês que uma bela manhã, quando tudo parecia certo e igual, quando tudo estava como na véspera, viram a vossa mãe morta, posta ajeitada num caixão e tudo de repente ficou diferente e desumano, e vocês sozinhos num mundo hostil e parado, o que eu pergunto é isto: lembram-se, lembras-te, da tua mãe? dos risos, do cheiro das suas roupas, das palavras murmuradas, da carícia suave dos seus beijos? Lembras-te? E das vezes que a viste chorar,e chorar por tua causa, por ti? Nesse dia o mundo mudou e era tudo tão forte e coerente e organizado até então; pois lembras-te, é o que te pergunto, como era o mundo antes? Conheço um rapaz que já nem se lembra como era o rosto da mãe, outros nem sabem o que isso foi, tristes que nunca a viram. O meu pai ensinou-me pouco, mas dizia: «perdi pai e perdi mãe, posso perder tudo o mais». E, no entanto, quando me perdeu a mim que lhe saí ao torto, essa é uma história comprida, chorou... Assim é o amor dos homens, tão incerto e desprevenido, tão mutável e enganador. [...]"

in Exercícios de Estilo, Luiz Pacheco,1971

4 comentários:

Unknown disse...

Forte... e muito bonito! Por minha parte digo: É impossivel esquecer! Só os momentos, as carícias, o olhar preocupado e carinhoso, o sorriso, as mãos... Aquele pequeno gesto de carinho, aquela pequena coisa comprada por saber que nós gostamos... é impossivel esquecer!Por isso vale a pena viver!

Anónimo disse...

brilhante escolha do trecho. Um texto absolutamente verdadeiro e comovente.

Nocas disse...

Obrigada por partilhares este magnífico excerto connosco.
Óptima escolha!
bjs

Anónimo disse...

Amei o teu novo visual...