11 de setembro de 2009



Freedom is nothing else but a chance to be better.

Albert Camus (1913 - 1960)


I firmly believe that any man's finest hour,
the greatest fulfillment of all that he holds dear,
is that moment when he has worked his heart out in a good cause
and lies exhausted on the field of battle - victorious.


Vince Lombardi (1913 - 1970)


Os portões fecharam-se atrás dele. "Estranho como os sons despoletam diferentes efeitos em nós consoante a situação em que estejamos...". Para ele, o rimbombar dos pesados portões de ferro, era o som de uma nova vida. Bem, isso é um absurdo: não há vidas novas nem vidas velhas; quanto muito, tempos novos e tempos velhos. Este era, então, um tempo novo. Que fosse. Sabia-lhe bem. Primeira paragem: um café.
- Olhe, por favor, podia dar-me outro, este café está queimado...
- Peço desculpa, eu vou já trocar. - respondeu o empregado.
O novo café nunca lhe soube tão bem. Bem, talvez o primeiro café que tinha bebido na vida, mas café a sério, não aquela mistura de cereais que ele misturava no leite quando era miúdo. Foi a primeira vez que se sentiu um homenzinho. Mas mais do que isso, foi quando fumou o primeiro cigarro, com os amigos, escondidos atrás da serração abandonada - infelizmente, não foi uma passagem à idade adulta propriamente agradável... Uma mulher entrou no café para comprar um maço de tabaco e os seus olhos cobiçaram-na. Medindo-a dos pés à cabeça, desejou-a imediatamente. Controlou-se. Não queria armar confusão, agora que estava livre de confusões. Só queria tranquilidade, que o deixassem em paz, na sua vidinha, fosse ela qual fosse.

Não sabia se estava preparado. Percebeu que entrar neste novo tempo iria ser mais complicado quando, ao entrar no autocarro, reparou numa das velhotas a olhar para ele, com um ar ligeiramente suspicioso. Sem saber porquê, ficou incomodado, quase como se lhe tivessem chamado uma qualquer injúria grave. "Para o que é que estás a olhar, velha?", foi algo que lhe passou pela cabeça mas conseguiu arranjar a frieza suficiente para se manter calado. Se fosse lá dentro aquilo não passaria impune, premeditado ou não. Um arraial de porrada, para começar, depois logo se via se a coisa dava luta ou não. Sentou-se e deixou que a viagem lhe tomasse conta dos sentidos.
Passados uns minutos apercebeu-se que a viagem lhe havia tomado demasiado conta dos sentidos. Acordou e tentou perceber onde estava mas não conseguiu reconhecer; nunca tinha visto aquelas ruas em lado nenhum, nada daquilo se assemelhava a qualquer coisa que tivesse visto alguma vez na sua vida.
- Desculpe... Onde é que estamos?
- Estamos a chegar à paragem, em E. - disse o senhor, um pouco distante.
- Em E.?... Já estamos em E.?...
- Sim! - exclamou com um tom de evidência clara - Não foi era para aqui que queria vir?...
- Ah... era... - e deixou os olhos mergulharem na cidade que passava por si. As casas, os carros, as pessoas, nada daquilo lhe parecia real, nada daquilo lhe era familiar. Não era aquilo que ele era, de todo. Ele era a mercearia do sr. Carmindo, a garagem do sr. António, a velha praça, o café Central e o café do Elias, o Pavilhão do Recreativo de E., a fábrica de Estofos, os baldios que rodeavam a cidade, os rebanhos que por aí pastavam, até a velha paragem... onde estava aquilo tudo? que lhe fizeram? que aconteceu?
Apeou-se do autocarro. Ficou minutos a admirar a paragem de autocarros. "Bela obra!" - pensou - "pelo menos é melhor que a antiga barraca que aqui havia". Puxou de um cigarro mas foi imediatamente avisado por uma pessoa que não se podia fumar ali.
Arrastou-se para a rua e ficou espantado com a quantidade de trânsito que havia a passar na rua. "Mas as pessoas multiplicaram-se como ratos ou quê?!... Ou então ganharam todos o totoloto! Olhem-me só para esta confusão de carros!" De facto, nem o ar da rua era o mesmo, muito mais pesado, carregado. Julgou mesmo sentir-se com nauseas, de tanto fumo inspirado. Mas lá foi caminhando, guiando-se mais pelo nome das ruas do que pelo que se lembrava delas. O centro da cidade não estava muito mudado, aí conseguiu reconhecer bem o que já estava antes de ter sido detido e depois. Mas rapidamente avançou por ruas desconhecidas para chegar à casa dos seus pais. Em breve teve de fazer algo impensável: perguntar por direcções. Na sua própria terra.

- O que é que vais fazer agora, filho?
Ele deu mais um trago no café.
- Não sei. Mas alguma coisa tenho de fazer. - olhou para ela - Acabaram-se as papas doces. - disse, pelo meio de um sorriso.
- Pois acabaram... - disse a mãe, assentindo - Nem deviam ter começado sequer!... - levantou-se - Queres mais café?
- Não, obrigado... - mais um trago.
- Ena!... Até agradeces agora!... Foi preciso ires de cana para aprenderes a ter maneiras!... Até parece que eu e o teu pai, que Deus o tenha, nunca tas ensinaram em casa. - e começou a lavar a loiça.
Ele sorriu. "Se tu soubesses...", pensou ele.
- Mas não tens nada em vista? não tens a mínma ideia do que queres fazer? - voltou a perguntar, por entre o barulho dos copos e dos pratos.
- Oh!... sei lá... lá na pildra ainda tirei um cursozeco profissional mas não sei se vai dar p'ra fazer aquilo. Não nos chegavam lá muitas notícias mas o facto de que o pessoal aqui fora andava um bocado enrascado de trabalho e dinheiro conseguiu passar pelos guardas. Não é animador... ainda p'ra mais um ex-condenado... - disse, meio deprimido.
- Pois, mas se nao fizeres nada por ti e não fores à procura, ele não te vai cair no colo. E depois o que é que vais fazer? Voltar a as...
- Isso já passou! - gritou ele, num repente, assutando a mãe, acalmando-se de seguida - ... isso já passou... - olhou para o que tinha diante de si, com o olhar vazio e semicerrado, e deu mais um trago, acabando com o resto do café que tinha na caneca.
- Pois... já passou... - disse ela, concentrando-se na caneca. Ele levantou-se e chegou-se ao pé dela, poisando-lhe as mãos nos ombros.
- Desculpa... não te queria assustar... - disse a meia voz.
- ... não faz mal. Tendo em conta o que já fizeste aqui por casa, acho que não é por isto que vais p'ro Inferno. - e suspirou.
Saiu da cozinha e foi para a sala. Em tons sombrios, pouco ou nada tinha mudado, excepto mais uma ou duas fotos dele, do pai (que entretanto tinha falecido com um ataque cardíaco) e da família da irmã. Pegou nesta última moldura e ficou a admirá-la. "Está mais velha... mais gasta... mas parece mais feliz...", pensou ele, vendo aquelas caras quase estranhas. Quem eram eles agora? Que eram eles agora?... Pegou na moldura com o rosto do pai. Eram estes olhos que o tinham acompanhado durante aqueles anos de encarceramento. Acusadores.

- És a minha vergonha, ordinário!! Sai-me já de casa!!
- Quem és tu para me mandares para fora de casa?? Não podes, sou teu filho, a casa é tão tua como minha! - disse, meio gozão.
- Quem sou eu?? Se esta casa existe, foi às minhas custas e da tua mãe! E enquanto vivermos aqui, a minha palavra e a dela é Lei, percebeste?? Além disso, que eu saiba, ainda não estou morto... isto ainda não é teu e ainda vou pensar se o será...
- Pai, pai, tem calma... não é preciso chegar a estes extremos! Vocês estão alterados, os dois, vejam se se acalmam! - rogou a irmã, pegando no braço do pai.
- Calma?? Este bandalho anda-me na má vida, na malandragem, sem emprego, sem ganhar a vida e eu ainda tenho que albergar um canalha, um parasita destes??
- Isso... continua a chamar-me isso, continua a chamar-me mais nomes e a foder-me o juízo... - chegou-se ao pé dele - Olha que eu começava a ter mais cuidado ao andar na rua, velhote...
- Velhote??... seu pulha de merda!... - disse, rangendo os dentes, avançando para ele. Acabou por lhe dar um soco na boca, fazendo-o cair com estalhardaço no chão. Foi o suficiente para as mulheres começarem aos gritos e polarizar a atenção nele, ajudando-o a levantar-se.
- É assim que queres... é assim que vais ter... - limpou o sangue do lábio, soltou-se das mãos da mãe e da irmã e saiu porta fora, sob o olhar impotente da família.


O seu quarto estava na mesma, como o tinha deixado naquela noite em que abandonou o seu lar... os lençois, a colcha, as fotos e os livros, tudo estava impecavelmente arrumado como quando chegava a casa, por essa altura. Olhou cada objecto com uma nostalgia absurda, sem sentido, como se assim pudesse voltar ao ponto em que tudo começou a desencarrilar na sua vida. Tinha desejado tantas vezes que isso tivesse acontecido...
- As últimas palavras dele foram para ti...
- Desculpa?...
Ela acenou com a cabeça para a foto do pai, que ele ainda trazia na mão.
- Ah... que foi que ele disse?
- Que te perdoava, que esteve à espera de ti, do teu regresso, que sempre esteve, desde aquela noite...
Ele sorriu com beatitude - Bem, acho que cheguei um pouco tarde demais para isso...
- Não, filho. Nunca é tarde demais seja para o que for enquanto se está vivo...
Ele entregou-lhe a moldura para as mãos e desceram juntos para a sala.
À noite, estavam todos finalmente reunidos. A irmã trouxe-lhe os sobrinhos para ele os conhecer a primeira vez, assim como o marido. Havia saudade, alegria e esperança no ar.
- Saem ao nosso pai... - disse-lhe ele, depois do jantar, na varanda.
- Sim... e cada vez mais. O mais velho, então, tem o mesmo feitio que ele: teimoso, respondão, impulsivo, só faz o que quer... mas é muito ternurento, como o nosso pai era... O mais novo é como tu.
- Como eu? o quê? um futuro presidiário? - riu-se.
- Não... - disse-lhe ela, olhando em frente para a noite escura - Curioso, traquina, segue sempre o seu rumo, diferente de toda a gente, destemido e muito engraçado. Acho que fazem uma dupla perfeita: o que falta a um, tem o outro... - pausou e olhou para ele - tal como tu e o pai...
Ele desviou o olhar - Não sabes o que estás a dizer.
- Sei sim. Sei que era em ti que ele mais se apoiava, que era de ti que ele esperava as melhores coisas, o melhor futuro...
- ... porque eu era o rapaz.
- ... porque tu eras a continuação dele, do nome da família, porque ele se revia em ti de um modo quase cego, porque ele acreditava em ti, no teu potencial... Ai de quem o contradissesse! Uma vez, quando era miúda, p'raí com uns treze ou catorze anos, a mãe mandou-me ir chamá-lo ao café Central. Quando eu lá cheguei, ele estava a falar de ti, a dizer como eras inteligente e trabalhador, de como aqui na terra não havia ninguém como tu e que serias um óptimo assistente dele e excelente futuro canalizador... eu fiquei cheia de inveja por ouvir dizer aquilo de ti - riu-se - mas pouco tempo mais tarde vi que ele tinha razão. Tu eras tudo aquilo que ele disse que eras. E nunca perdeu essa fé até ao fim. Achava que logo logo irias sair da prisão, mais cedo até, por bom comportamento, e que retomarias o lugar que deixaste vago...
Silêncio.
- Porque é que não viste ao funeral dele?
Encolheu os ombros. - Sei lá... com a despedida que tivemos naquele dia, com a vergonha de aparecer sendo um recluso, com a fama que tinha aqui na terra, achei que era melhor ficar na gaiola do que ir piorar ainda mais o vosso dia. Alem disso, mas não tão importante, aquele murro que ele me tinha dado ainda me fazia doer o orgulho.
- Deus do céu, já tinha sido há oito anos!... Quem é que se lembra de um murro de oito anos?
- Eu lembro-me! Eu!! Eu lembro-me porque foi dado com base numa discusão completamente ridícula, com base num rumor que um tipo qualquer tinha inventado sobre mim, só porque eu andava com o pessoal que andava... mas era mentira... sempre que eles se preparavam, p'ra fazer alguma, eu afastava-me e ia p'ro café ou vinha p'ra casa... - pausou, recomeçando a meia voz - Foi depois dessa noite que comecei mesmo a andar na má vida, dando no que deu...
O silencio regressou à varanda, entrecortado pelos gritos das crianças dentro de casa. Continuaram os dois a tomar o ar da noite fria e ela passou o braço por cima do ombro, reconfortando-o com um beijo e acariciando-lhe o rosto.

Os dias passaram e ele começou à procura de emprego. Esperava que ninguém se lembrasse mais do que ele tinha feito na companhia do grupo dele, doze anos antes. Afinal, a terra tinha crescido tanto, seria difícil éncontrar alguém com poder de decisão numa empresa, que se lembrasse disso. Sobretudo depois do que ele tinha visto na televisão nos ultimos dias, que mais parecia um diário de horrores. Passado umas semanas, encontrou uma oportunidade numa empresa de metalo-mecânica e compareceu na entrevista. Estava nervoso, era compreensível, queria fazer boa figura e esperava... não, rezava!, que ninguém lhe perguntasse o que tinha feito nos últimos anos.
- Com que então o senhor está a candidatar-se ao lugar de torneiro mecânico, não é assim?
- É sim, senhor.
- Muito bem, então quais são as suas qualificações?
- Tirei um curso profissional na Escola Profissional de V.N.A. - apresentou-lhe o diploma.
- Hmm, hmmm... - disse analisando o documento - muito bem... e chegou a exercer nalguma empresa anteriormente?...
- Não senhor, não tive oportunidade. - respondeu, com alguma reserva.
- Quer dizer que não tem prática...
Engoliu em seco - Não, senhor.
- Hmmm... estou a ver... e que experiência profissional tem, para além desta formação?
- Trabalhei como canalizador e servente de pedreiro durante sete anos.
- Canalizador?... Interessante... É que eu estava a reparar melhor no seu nome e lembrei-me do meu antigo canalizador, que já morreu, que era daqui da terra, o sr. Terêncio, um óptimo profissional...
Pensou se havia de dizer a verdade ou não mas afinal o pai morrera a chamar por si. Seria injusto para com a memória dele.
- Sim, é o meu pai. Eu ajudava-o no trabalho dele antes de ter saido de casa...
- O quê?... Você é que é o filho do Terêncio? Que coincidência!... Por esta é que não estava à espera... ouvi o seu pai falar tanto de si, que nem imagina!... Mas... se bem me recordo, não foi você que esteve envolvido no assalto à ourivesaria Brilhante? Disseram-me, na altura, que o filho do Terêncio também tinha estado metido nisso...
Ele transpirou por todos os poros. Tinha descoberto o seu calcanhar de Aquiles. Parou para reflectir e respondeu:
- É um passado que já lá vai, senhor. Paguei a minha dívida para com a sociedade e agora estou a tentar recomeçar muito antes do ponto em que me desviei da vida de homem honrado. Saí antecipadamente por bom comportamento e creio que o facto de ter tirado o curso enquanto fui recluso demonstra a minha boa vontade em recomeçar uma vida séria.
O director olhou para ele com ar desconfiado - Estou a ver... bem, eu ainda tenho de fazer mais umas entrevistas e depois vou reflectir. Quando chegar a uma decisão, será informado, quer seja admitido, quer não. Ficamos então assim?
- Sim, senhor.
- Óptimo! Então um resto de bom dia...
- Bom dia, senhor...

- Oh Jaime! Passa-me aí a peça por fresar, sff! - pediu ele.
- Toma! Já tens essa pronta para levar ao 'Côxo'?
- Já 'tá pronta há mais de meia hora, se não andasses a tentar meter-te com a gaja da contabilidade!
- O que é que queres?... Com uma 'tranca' daquelas, dava-lhe uma q'ela até havia de deixar de saber contar... Santa mãezinha!...
- Guarda mas é a 'maquina de calcular' dentro das calças e vai-me passando as peças...
- É pá, vai com calma, que isto 'tão quase a ser 18h... amanhã 'tamém' é dia!...
- O cliente queria isto p'ra ontem, percebes? E o patrão anda em cima de mim como cão num osso. Por isso, vê lá se te despachas!
- Está bem, está bem... também, és pior que ele, ..dass!... nazi do caraças...
O ambiente na empresa era bom e ele era muito competente e esforçado. Sabia que não podia desiludir quem lhe tinha dado aquela oportunidade.... e a memória do seu pai. Afinal de contas, foi também um pouco graças a ele que o patrão lhe tinha dado o voto de confiança:
- Jovem, o teu pai era um grande homem. Mas isso não significa que tu o sejas. Ele provou o seu valor até ao fim, e tudo o que tu fizeste até agora, ou há uns anos, foi adiar a tua vida. Disseste-me que quando começaste a trabalhar, era com ele que andavas, não foi?
- Foi sim...
- Eu sei que o nosso primeiro emprego nos marca muito e sei também que ele te tinha em larga estima. Dizia que eras muito inteligente e aplicado. Para ele foi como um choque teres feito o que fizeste, ele nunca percebeu, ficou desolado... Se és tão inteligente como ele dizia que eras, creio que tens o que é preciso para trabalhar connosco. Mas, devido ao teu passado recente, devo dizer-te que vou estar de olho em ti. Vais ficar à experiência durante um ano. Eu sei que é mais tempo do que o normal mas é de propósito. Se, durante um ano, houver o mais pequeno problema, se faltares, se te atrasares nas encomendas, vais mais depressa para a rua do que eu a dizê-lo. Aceitas este acordo? -
dissera, então, num tom sério.
- Claro! É a minha oportunidade, a única que tenho!
- Óptimo! Começa-se às 9h e despega-se às 18h. O almoço é às 13h, durante uma hora. O teu ordenado, depois falas com a Elisa, da contabilidade... -
acompanhara-o à porta - mas não te demores lá muito. - disse com um esgar malandro.

- Então, como correu o teu dia? - perguntou a mãe.
- O costume... se tudo correr bem, já não te fico a chatear aqui em casa muito mais tempo... devo estar prestes a conseguir o suficiente para mudar-me para um cantinho meu. - disse, pousando o saco com a marmita que levava todos os dias para o almoço.
- A sério? Optimo, filho! Mas agora que nos estavamos a dar tão bem, é que tu sais de casa?
- Mãe, por favor, já tenho 35 anos!... Acho que... - e fez um gesto indicando que o que era demais era demais.
- Eu percebo-te - e sorriu - o jantar está pronto daqui a uns minutos - sais hoje?
- Em principio não... Ehhh - bateu com a mão na testa - esqueci-me de uma coisa na fábrica. Tenho de lá ir rapidamente senão o coitado amanhã fica sem aquela papelada e faz-lhe falta... já venho, não demoro...
- Vai lá então, eu deixo isto coberto para não arrefecer...
Saiu a correr e foi num ápice que chegou à empresa. Pediu ao porteiro para o deixar entrar, para ir aos vestiários buscar uns papeis. O porteiro ao inicio franziu o olho e, como o patrão ainda estava a trabalhar, ligou para ele. Não atendeu.
- Estranho... vou tentar outra vez... - disse o porteiro, surpreendido.
De novo, o sinal de chamada sem resposta...
- Passa-se alguma coisa, de certeza... já toda a gente saiu, só cá está ele, até dá p'ra ver a luz daqui.
- Quer que eu lá vá ver? - perguntou ele ao porteiro.
- É melhor que eu não posso sair daqui, estou à espera do meu colega para me vir render. Se ele não me vê aqui, dá logo o alarme à central.
- Então vou lá ao patrão e depois digo qualquer coisa.
Avançou com o carro, então, em direção ao gabinete do patrão. Ao chegar lá, bateu à porta, sem resposta. Bateu novamente e foi surpreendido por uma voz ao fundo do corredor.
- Terêncio! Qu'é que está aqui a fazer a esta hora? Queria alguma coisa?
- Desculpe, sr. Dr. É que o porteiro ligou para si a perguntar se eu podia ir aos balneários buscar uma papelada que deixei no meu cacifo e, como não atendeu, podia ser que estivesse alguma coisa errada e vim cá ver...
- Fui só à casa de banho - com a minha idade é normal uma pessoa demorar um bocado mais... e a ir mais vezes... Mas pronto... Vá lá então ao seu cacifo mas depois, já que está aqui e eu nao tive oportunidade durante o dia, passe por aqui que eu quero dizer-lhe umas coisas.
- Com certeza, sr. Dr. Com licença.
Dirigiu-se ao seu cacifo, pegou nos papeis que queria e regressou ao gabinete do patrão. Bateu à porta e entrou.
- Com licença, sr. Dr.
- Entra entra... Senta-te. - arrumou uns papeis - Então é o seguinte, como sabes, já estás cá há quase um ano, pelo que estás quase a acabar o período de experiência que te propus e aceitaste. Tenho a dizer-te que não me desiludiste, bem pelo contrário: és aplicado, diligente, pontual e o pessoal tem-te em boa conta. Ora, sei que ainda estás a viver com a tua mãe, não é assim?
- É sim, sr. Dr.. Mas estou quase a conseguir ter um pé de meia para me mudar. Mesmo assim, nunca antes de quatro meses.
- Pois, era isso que queria falar contigo. Decidi dar-te um prémio, ou um incentivo, como queiras. Vou-te aumentar em... - pausou por segundos, fechando os olhos.
- Sr. Dr., está-se a sentir bem?
- Sim, sim... - fez um gesto a acalmar - ... como estava a dizer, vou-te aum... - parou de novo - oh raios, isto não anda bem... vou-te aumentar em... - calou-se e perdeu os sentidos, caindo para o lado.
- Doutor?! Doutor?!
Levantou-se e foi verificar se o patrão tinha pulsação. Fraca mas tinha. Ligou para o porteiro.
- Estou?... Quem fala?... Daqui fala Terêncio! O patrão acabou de desmaiar.
- Mas então, chama-se uma ambulância!
- É demasiado tarde p'ra isso, vão demorar como o caraças a cá chegar. Venha mas é cá e ajude-me a trazê-lo p'ro meu carro, que eu levo-o ao hospital. Despache-se!
Passado meio minuto, o segurança apareceu e ajudou a transportar o patrão para dentro do carro, que se encontrava à porta do edificio dos escritórios. O carro deslizou em direcção ao hospital.

- Pois foi assim que aconteceu, juro-te... e se tens dúvidas pergunta ao segurança que está lá hoje!
- Eh pá, essa história é muito rebuscada... estás na tanga, é o que é! Queres é sacar a gaja da contabilidade! - disse-lhe Jaime, gozão.
- Olha, acredita no que quiseres... Se tens duvidas vai aos escritorios daqui a pouco e perguntas. Ou vais à portaria, que é o mesmo.
- E vou! E depois vou gozar contigo e chamar-te mentiroso até não me poderes ver nem pintado de ouro.
Ele fez um gesto como que dizendo "como queiras"... Passado uns minutos, foi chamado à Administração.
- Que é que eles querem agora?... Jaime, toma conta desta rebarbadora e vai preparando o torno, para quando eu chegar.
Passado uns minutos, voltou com um ar de quem não está bem neste mundo.
- Então pá? O que é que se passou?
- Nada, nada... o torno já 'tá pronto? Tem a peça montada com a fresa a jeito? estás à espera de que??
Mais tarde, chegado a casa, contou à mãe o que se tinha passado na noite anterior porque é que tinha sido chamado à recepção.
- Bem... se ele não confiar em ti depois disto, não sei!... Mas dizes tu que a mulher dele te ligou, foi?
- Ah, sim! Ligou hoje para à secretária, a pedir p'ra falar comigo: queria convidar-nos - a mim e a ti e à mana, se ela quiser - para um jantar lá em casa deles, de agradecimento, assim que ele tiver alta.
A mãe ficou contente e naquela felicidade os seus olhos brilhavam. Já não se lembrava quando tinha sido a ultima vez que a tinha visto assim. Talvez em miúdo, na escola, quando trazia uma boa nota ou um prémio mas isso já tinha sido há tanto tempo... Sentiu-se feliz pelo orgulho que a mãe tinha por si naquele momento, lembrando-se de onde tinha vindo, por onde tinha passado, por que é que tinha passado e onde estava agora. As coisas estavam a correr bem.

O dia do jantar chegou. Foi uma noite de festa, uma noite de celebração, comemorada intimamente pelas duas famílias. A casa era enorme e a família Terêncio estava deslumbrada com tudo; os miúdos corriam de um lado para o outro, fazendo longas incursões pelo jardim, correndo pela relva fora, caindo, correndo de novo, indo vendo os cães do patrão... O jantar foi repleto de risos e de histórias, e eis que se chegou, sem se saber bem como, à altura das sobremesas e do brinde.
- Caríssimos, estamos aqui reunidos para celebrar a vida. Como todos sabemos, aquilo que me aconteceu poderia ter um desfecho dramático, com consequências bem maiores do que o desapareciemnto de um ser Humano, facto já de si, profundamente lamentável. No entanto, foi graças ao coração e à frieza de um Homem que eu devo a minha vida. Este homem está aqui presente, a meu lado, esta noite, no que acaba por ser um desfecho muito feliz para todos. Em vez de uma reunião de lamento e lágrimas, é uma reunião de celebração. E mais feliz é ainda por este motivo: o Terêncio não sabia disto, obviamente, mas a minha mulher é a filha e irmã mais nova, do anterior e actual dono, respectivamente, da ourivesaria Brilhante.
Ao dizer isto, toda a família Terêncio ficou espantada e bastante embaraçada.
- Não te preocupes, Terêncio. Tal como disseste, em primeiro lugar, a tua dívida já foi paga com anos da tua vida e isolamento. Só por si, sei que isso é difícil para um homem. Mas o teu gesto de ontem, revelou que este homem que foi julgado, acusado e considerado culpado, não é de todo um criminoso de caracter distorcido, mas sim uma pessoa que, por força das circunstâncias de então, cometeu um erro e que, num momento dificil soube transcender os seus limites e encontrar a força para salvar a vida de outro ser Humano, que, quis o Destino, nos seus mistérios, fosse parente daqueles que um dia prejudicou.
A mulher do patrão acenou com a cabeça e pediu para ser ela a concluir.
- Terêncio, caríssimos, lembro-me, na altura, que foi bastante difícil à minha família ultrapassar o assalto que o grupo em que te incluias fez à ourivesaria do meu pai. No entanto, dessa vez, só se perderam bens materiais. Desta vez, perder-se-ia uma vida humana, a vida do meu querido marido. Nada pode pagar essa vida. Nem todo o recheio de todas as ourivesarias. Quero deixar aqui, de viva voz, que te perdoo, de coração e que agradeço a Deus por te ter encaminhado para a empresa do meu marido. Obrigado, Terêncio.
- O teu pai era um homem honrado, e também tu o és. - acrescentou o patrão - Muito obrigado!

Ele entrou na sala e desapertou a gravata. Olhou em seu redor e encontrou alegria nas fotografias, entretanto trocadas por outras mais recentes... excepto uma. Caminhou na sua direcção e pegou na moldura, acariciando o rosto da imagem aí presente. Pensou em todos os momentos bons que viveu com ele, e pensou nos que poderia ter vivido se não tivesse sido tão impulsivo e rebelde. Mas, então, um homem poderia, neste momento, estar morto. Achou tudo aquilo perfeitamente irónico mas de uma extraordinária beleza. Perguntou-se também se seria capaz de salvar a vida do patrão se não tivesse passado pela cadeia. Mas nada disso interessava... aquele era o seu momento, em privado, com o seu pai. Mais do que agradecimentos, mais do que jantares e brindes, o que ele mais queria era que o pai tivesse sabido que tinha salvo uma vida e que sentisse que estava orgulhoso dele. Sentia falta do seu perdão audível, do seu orgulho visível.
- Podes ter a certeza que ele está orgulhoso de ti... eu sei disso...
- Há quanto tempo aí estás? - disse ele a rir.
- Há tempo suficiente para te ouvir os pensamentos e te ter visto chorar... - pegou-lhe na moldura, arrumou-a e sorriu-lhe - Anda, vem - beijou-o na testa - vem dormir na tua cama, da tua casa, da tua família que se orgulha e te ama, toda.
Terêncio secou as lágrimas e foi deitar-se. Ao puxar os lençois, uma moldura de uma foto dele com o pai estava na sua cama. E foi aí que entendeu.

1 comentário:

Sílvia disse...

E cá está mais uma história de esperança no futuro...mt boa ainda pensei q fosse dar em twist retorcido mas afinal não e senti-me mal qdo a li até ao fim, já estamos tão habituados a coisas más q nem acreditamos na magia dos contos...
Obrigada e ctinuação de boas inspirações...
Boa sexta-feira :)