5 de setembro de 2009


This is the true joy in life,
the being used for a purpose recognized by yourself as a mighty one;
the being thoroughly worn out before you are thrown
on the scrap heap;
the being a force of Nature instead of a feverish selfish
little clod of ailments and grievances
complaining that the world will not devote itself
to making you happy.

George Bernard Shaw (1856 - 1950),
Man and Superman, Epistle Dedicatory
...e...
Just to be is a blessing. Just to live is holy.

Rabbi Abraham Heschel

Olhou para as mãos rugosas. Olhou também para as mãos lisas da neta que, por sua vez, o olhava atentamente - era uma espécie de adoração silenciosa, um estudo delicado mas firme de outro alguém que sabia ser só seu. O contraste das texturas era belo, doce, poderoso: em cada ruga das suas mãos, o Tempo fazia-se sentir como força inexorável, aliado forte de dias passados que, alquimista de corpos, transformara a suavidade original em relevo acidentado. Nos calos que as mãos exibiam, mil cantares se encerravam, risos e lágrimas partilhados durante a labuta pelo "pão nosso de cada dia", gestos repetidos com ardor, ânimo e persignação. Agora, nesses montes da carne, poisavam os seus olhos, cantando a alegria da jornada que findava a um sol que se punha plácido, na contemplação longínqua dos ribeiros de suor transpirado com prazer, nuns dias, com resignação, noutros. Do alto dessas colinas avistava as lisas e frescas planícies das mãos da neta, potencial de Tudo, terreno a ser semeado, casa a erguer, simbolo do Devir, sonhos a cumprir. A beleza de todo esse "pode ser que...", o encantador mistério encerrado na pele imaculada, por trabalhar, era para ele como jangada em águas calmas de um espelho de água de margens indefinidas, transportando-o em inércia a todos os lugares onde gostaria de ter ido, visitando gestos que gostaria de ter feito. Era tempo certo de o fazer.
Sorriu, com beatitude. Era uma doce sensação que gostaria que perdurasse em si para poder saboreá-la com a calma que o momento merecia. Não foram muitos os momentos em que tal sensação lhe adveio: os raros elogios do pai, austero; a conclusão de um trabalho particularmente árduo e exigente; o primeiro olhar trocado com a sua mulher; o primeiro beijo, a primeira noite de amor; o primeiro sorriso dos filhos e dos netos; todas as vezes que viu o mar, que mergulhou nele; a descoberta de uma música que o tocava; as paisagens de perder o fôlego; as novas sensações que inundavam os sentidos...

- Avô, tens as mãos bonitas! - pausou, inclinando ligeiramente a cabeça, sorrindo - Quando for grande quero ter umas mãos como as tuas.
- Hás-de ter, querida! Mas tens de dar tempo ao Tempo... - e riu-se, num riso rouco, calmo.
A neta não respondeu. Não sabia o que responder. Continuava em adoração, o olhar viajando entre a cara do avô e as mãos. Fixou-se nos grandes olhos azuis que o avô tinha. Sabiam-lhe bem, eram bonitos, faziam-na sentir-se bem, confortável, em casa. Família.
- Tens a certeza que vou ter assim as mãos?... Que é que fizeste para tê-las assim?
Nova riso rouco. Às vezes, parecia que ela só lhe fazia estas perguntas para o ouvir rir.
- É muito simples: não tive medo de viver. Tudo o que quis fazer, e tudo o que tinha que fazer, fiz. Imagina a vida como um grande baile com incontáveis convidados, todos muito bem vestidos nos seus trajos de gala. Durante o baile, sempre alguém me pedia para dançar, ou queria dançar com alguém, dançava. Uns têm dois 'pés esquerdos', outros sabem dançar como anjos, mas o que importa é a dança em si, o movimento, o saborear a música, o sentir-mo-nos a rodopiar com outra pessoa que não tinha obrigação nenhuma de dançar connosco, a partilha de uma experiência, a acção. - pausou, de olhos postos nela - Sabes o que é o Tempo, querida?
A neta parou pensativa. Era uma pergunta que era mais complicada do que o que parecia.
- Não sei. O Tempo é o mexer dos ponteiros, não é, avô?
Uma estrondosa gargalhada ecoou na divisão iluminada pelo sol da tarde.
- Como tu és sábia, minha querida!... É quase isso. O Tempo é o que a Vida é. É o decorrer da Vida. É o que tu fazes na vida. São todos os instantes que acontecem, é tudo o que acontece. - olhou para a neta, para ver se ela o estava a entender - Os relógios só enganam. O teu verdadeiro relógio é o teu coração. - disse, picando-a ternamente com a ponta do indicador no peito.
Ela sorriu com a ideia do coração ter uns ponteiros e, de vez em quando, um cuco a saltar lá de dentro. De vez em quando, quando se assustava ou estava muito triste, sentia uma dor no coração. Será que era o cuco a picar-lhe o coração?
- Avô, gosto muito de ti! Quero ficar sempre contigo... - disse, com um sorriso na cara e uma seriedade de eras no que dizia, solene, sólida, ponderada. O momento era de uma doce violência que o apanhou desprevinido: era intenso, um daqueles momentos em que o Tempo se condensa, expandindo-se para lá da percepção dos sentidos, para lá da Razão. Os olhos do ancião marearam-se de lágrimas.
- Estás triste, avô? - disse, assustada.
- Não, querida, não... - respondeu, tranquilizante - Estou muito feliz. Também quero ficar contigo para sempre. E vou ficar contigo para sempre. - disse, inclinando a sua cabeça na direcção dela, encostando por fim a sua testa á testa dela - É uma promessa que tenciono cumprir! - e beijou-a na testa, sorrindo.
A neta saltou do colo do avô e correu para o jardim, aos saltinhos. Ele observou-a, na perfeição do momento. O conforto, o alpendre em que se encontrava, o jardim completamente florido, o perfume que se libertava das flores, intenso de calor e sensações, a neta que brincava por entre elas, no seu mundo perfeito. Um dia, o Tempo cobraria o preço desta e de outras bençãos, levando-o para outro mundo, desconhecido, por vezes assustador mesmo. Mas agora não era tempo disso: ele estava ali e isso, como poucas vezes na sua vida, fazia todo o sentido. Alongou o seu olhar até à linha do horizonte, vislumbrando o mar ao longe e deixou-se mergulhar noutros pensamentos de Verão

A neta voltou ao colo do avô com um bicho que tinha encontrado no jardim. Era uma pequena lagartixa, apanhada desprevinida durante um banho de sol. O avô riu-se quando lha mostrou.
- Avô, o que é que as sardaniscas comem?
- Bicharada mais pequena que ela. Aranhiços, mosquitos, coisas assim... - Uma nuvem passou pelo rosto da neta.
- Que pena... se elas comessem o mesmo que nós, ficava com ela e dava-lhe de comer. Depois podia brincar muito com ela! Não era bom, avô?
- Era muito engraçado, querida, mas sabes... eu acho que é melhor as sardaniscas ficarem no jardim e nas pedras onde apanham sol. É que elas não gostam de viver em casas, como as pessoas, os cães, os gatos ou alguns passarinhos. Aborrecem-se muito. Depois ias querer brincar com ela e ela não ia querer. Não gostavas que isso acontecesse, pois não, linda?
Ela abanou a cabeça, olhando para o bicho que estava fechado dentro das suas mãos, só com a cabeça de fora, imóvel.
- Vou pô-la no muro outra vez. Assim ela fica contente! - sorriu - Se a voltar a encontrar, depois brinco com ela.
O avô riu-se e a criança foi a andar para o jardim, olhando para o bicharoco. Quando regressou, o idoso pegou de novo nas mãos da neta. Estavam agora ligeiramente sujas de terra e ele sacudiu-as com carinho, beijando-as no final. Eram tão pequenas comparadas com as suas. Parecia-lhe difícil acreditar que, um dia, também as suas foram assim. Era quase mágica essa modificação, mas assim era o Tempo: mágico, impassível no seu ritmo e seus humores, silencioso; um artista plácido. Embalado nestes pensamentos, continuou a embalar-se e à neta na cadeira de baloiço, saboreando o sol que se abeirava da linha do horizonte e a brisa cálida com sabor a sal, terra quente e mato que, em brincadeira, fazia breves aparições aos seus sentidos. Naquele momento, sentia os dias cinzentos, de lágrimas, de tristezas, tão úteis como o cimento entre os tijolos nas paredes de uma casa: não eram bonitos mas eram necessários para que a casa crescesse, sólida e inabalável a tempestades futuras, confortavel e acolhedora a dias de sol.
Olhou para a neta, que já dormia, mergulhada em sonhos de fábula que só ela sabia. As mãos, entreabertas e indefesas, pediam carinho sincero e amor livre, às mãos cheias, e ele beijou-a ternamente na testa. Aconchegou-a mais para si e, neste ninho improvisado, viajou pelos vales, montes e covas das suas mãos, olhos de regatos, olhando de novo para o Futuro, saudoso.

3 comentários:

Sílvia disse...

:) um texto q poderia ter sido tirado da minha vida...neste dia 5 em q se o meu avô estivesse cmg seria um dia de felicidade...mas a promessa cumpriu-se e ele está sempre cmg mesmo que me tenha deixado e partido para o desconhecido há muitos anos...achei engraçada a coincidência! Agora está na hora de ir trabahar...
Beijos

Joana Canais disse...

Um texto lindo coincidente com o dia de hoje, pois a minha avó faz anos...é a única que tenho mas, tal como a neta da história, também aprendi e aprendo muito com esta minha avó, a minha predilecta. :) Obrigada por mais uma linda história. Beijinhos

IM disse...

A data não diz nada, o texto fez-me recuar na história, aos tempos em que me pendurava nos pescoço do meu avô, também de olhos azuis...
LINDO!

Beijos!