3 de setembro de 2009


If you hate a person, you hate something in him
that is part of yourself.
What isn't part of ourselves doesn't disturb us.

Hermann Hesse (1877 - 1962)

"Bolas! Grande bruto!", pensou uma senhora que lhe passou ao lado. "É melhor sair daqui depressa, não vá ele virar-se para trás e fazer-me qualquer coisa..."
- Anda, Vicêncio... - puxou pela trela do cãozito que acabava de fazer as suas necessidades ali perto. O pobre Pequinês emitiu um pequeno latido e começou a caminhar, após uns breves momentos de arrasto. A senhora de idade, apressou o passo, afastando-se e olhando sempre para trás.
Cristovão não ligou. Estava habituado àqueles olhares constantemente, sobretudo naquela pequena vila do interior, mais ainda depois de ter vindo da cidade grande, onde vivera quinze anos longe do local onde nasceu. A sua passagem em público fazia notar-se com todo o estrepidar de correntes que ostentava de vários pontos da sua vestimenta, os numerosos piercing's que exibia, as tatuagens nos braços e pescoço e a roupa constantemente negra. Era uma indumentária que marcava bem a sua posição: "não se metam comigo, eu não me meto convosco". O seu rosto era também um cartaz desse aviso, bem exposto.
À sua passagem, a rua esvaziava-se. As crianças que brincavam na rua, desapareciam e o seu riso e gritos de brincadeira cessava de se ouvir; as conversas na esplanada dos cafés cessava; as pessoas de idade, mais frágeis, tomavam um rumo um pouco semelhante à das crianças, mantendo (como se viu pela senhora do cão) a sua posição até que Cristovão passasse. Eventualmente escutava pedaços de conversas meio cochichadas que sabia serem sobre si: os olhares atirados em simultâneo com esse opinar não deixavam margem para dúvidas (caso as houvesse) - "... aquela figura!...", "... vergonha nenhuma na cara...", "... um morto autêntico...", "... mais ferro que a minha casa inteira...", "... o pai dele o visse...", "... drogado...", "... entrava em casa, não!...". Cristóvão passava ao largo destas opiniões, seguindo sempre o seu caminho, impassível.

D. Perpétua era o espelho da pequena comunidade. Impecável e sobriamente vestida, com o seu cabelo de prata quase geometricamente penteado, passava na rua, sendo cumprimentada pela população em geral. Frequentava os melhores círculos sociais, a igreja (da qual era a secretária do sr. Padre), líder da Liga Moral Comunitária e era largamente influente na opinião das pessoas que lhe pediam opinião sobre qualquer assunto, desde a culinária à politica local ou nacional, passando pela jardinagem, apicultura, moda ou etiqueta. Estava, portanto e sem admirar, sempre informada de tudo quanto se passava na vila. Era, no fundo, a verdadeira líder daquela localidade. Pessoa que não a cumprimentasse, ou fugisse do seu olhar, tinha os seus dias contados na estrutura social: sabia dos podres de cada um naquela terra e não hesitava em usar-se desses (ou doutros) "trunfos" (sempre cordialmente, claro está), nos bastidores ou (em casos mais drásticos e raros) frontalmente, para atingir os seus objectivos e (mais que tudo) manter a sua posição na pirâmide social da vila. No seu quadro perfeito e (quase) imaculado da sociedade perfeita que se orgulhava de ser a Criadora e Garante maior, só uma pessoa borrava a pintura: Cristovão.
Lembrava-se perfeitamente do dia em que regressou à vila. Ia a passar pelo Talho Central e viu, do outro lado da estrada, uma figura negra, cheia de metal, coberto de tatuagens de figuras inomináveis que descia do autocarro com uma mala igualmente negra. "Se os meus olhos não me enganam," pensou ajustando os pequenos óculos rectangulares, "Mas aquele é o 'pequeno' Cristóvão Gil, se não me engano!... Deus do céu, que figura horrorosa!!... espero que esteja só de passagem...", abanou a cabeça, seguindo caminho. Mas rapidamente desejou saber mais do que se estava a passar, mas sabia que a melhor maneira de saber era esperar que a notícia começasse a circular: rapidamente lhe chegaria aos ouvidos, dominando os canais de comunicação como dominava.
Mas nada se soube. Perguntou no Mercado, na Farmácia, no Talho, na Padaria se tinham ouvido algo "daquele jovem tão estranho...". Nada.
- Como assim nada?
- Nada, D. Perpétua! Ninguém sabe de nada, ao que ele vem, se vai sair de cá... não se sabe de nada. Só que ele está a viver na casa que era dos avós, Deus os tenha no seu Eterno descanso. - disse a Padeira, tão espantada como Perpétua.
- É impossível! Alguém tem que saber! Ele tem de se dar com alguém! Não pode viver sozinho, desligado de tudo e todos!
- Aí está a estranheza, D. Perpétua: ele vive isolado de tudo e todos. Sai de casa a meio da tarde e não se sabe a que horas chega de madrugada. Com aquele aspecto, de certeza que vai roubar, para arranjar dinheiro para a droga!...
- É o mais provável - disse Perpétua, olhando para o chão, pensativa - mas há que ver que só temos suposições.
- Pois e como diz o mandamento: "Não levanteis falsos testemunhos.", não é verdade D. Perpétua?...
- Pois, pois... - disse, com um ar saturado e gesticulando como que afastando qualquer coisa - mas um caso como o dele é especialmente grave. A segurança da Comunidade e a manutenção da Ordem, Moral e Bons Costumes podem estar em perigo. O Cristóvão é um mau exemplo! Pense nas crianças! Imagine o que é eles crescerem com... aquilo... ao pé deles. Inconscientes como são, os pobres anjinhos, não demorava muito a adoptarem o mesmo estilo de vida, arruinando-as, quiçá, para o resto das suas vidas.
- Tem razão D. Perpétua, como sempre!... O Cristóvão tem de sair daqui da terra o mais rapidamente possível.
- Humpf... - disse suspirando e pegando no saco com o pão - enfim... Na reunião de Quarta-feira da Liga, falaremos mais em pormenor deste assunto...
- Sim, D. Perpétua. Já agora, como está o marido da senhora? Já não o vejo há tanto tempo...
- Ai... muito mal, muito mal... - disse, tomando rapidamente um aspecto sofredor - aquele problema não tem maneira de melhorar... já está assim há tantos anos, desde que sofreu o AVC, coitado... a única coisa que posso fazer é proporcionar-lhe o maior conforto possível, dar-lhe o melhor que tenho e todo o meu tempo, a minha vida... mas enfim... - suspirou - só rezo para que Deus o mantenha comigo pelo maior tempo possível... todos temos a nossa cruz, não é verdade D. Silvina?
- É sim, D. Perpétua, é sim... - disse, abanando a cabeça - Então olhe, as melhoras para o seu marido! Tenha um bom dia para si e Deus vos guarde!
- Deus nos guarde a todos e nos dê o melhor conselho... Adeuzinho, D. Silvina! - e saiu, no seu passo decidido e algo apressado.
Ao longo dos dias, a curiosidade de Perpétua passou de uma ligeira comichão dentro de si para uma ferida no seu orgulho. Tinha de agir, e depressa, para que aquela situação se resolvesse rapidamente. Afinal, certamente a sua imagem estava em risco: a prolongar-se aquela situação, seria vista como incompetente e a sua margem de manobra, influência e reputação seriam severamente atingidas. Foi então que decidiu 'aumentar o lume' e começou a emitir opiniões sobre a hipotética vida de Cristóvão. E assim começaram as conversas em surdina e o clima de suspeição subiu de tom. Mas as coisas mantiveram-se na mesma: Cristóvão manteve o seu estilo de vida e a ferida moral dentro Perpétua começava a tornar-se numa chaga que obcessivamente lhe tomava a vida.
Decidiu então usar a artilharia pesada: o Padre a exortar os fiéis na homilia a afastarem-se de toda e qualquer influência das "ovelhas trasmalhadas da congregação", algumas insinuações públicas que as pessoas deviam fazer qualquer coisa pelas suas mãos e a influência sobre o chefe do posto da Guarda, seu sobrinho-neto, que eles tinham de o travar e investigar quais eram os seus intuitos.
- Sabe-se lá o que é que ele já armou por aí ou roubou!... - dizia, toda vermelha, tal era a sua ira.
- Não se preocupe, minha Tia. - disse o Tenente Vítor, com bonomia - Os meus homens vão tratar disso... vá descansada...
- Mas é mesmo para tratares disso! Não sejas como o teu avô, que Deus o tenha em descanso, que era um preguiçoso e incompetente de primeira apanha. A única coisa de jeito que fez foi casar-se com a minha irmã Maria do Carmo (nunca soube o que é que aquela rapariga viu nele!), que sempre lhe pôs alguma coisa no juízo e o tornou nalguma coisa útil à terra.
Nos dias que se seguiram, Cristovão foi várias vezes interpelado pela Guarda, sem que tivessem obtido informação relevante.

- Está na hora do remédio, Adolfo!... Levanta-te, vá! - disse Perpétua, com desdém.
O pobre Adolfo, com um braço paralizado, consequência do AVC sofrido anos antes, tentava-se sentar na cama com muita dificuldade. Olhou para ela e nos seus olhos bailou um pedido de ajuda que lhe era difícil de verbalizar.
- Ohh, raios! Não faças esses olhos para mim, inútil de um raio! - disse, falando entredentes, enraivecida, dando-lhe uma palmada no ombro, que fez Adolfo desequilibrar-se e descair para a cama de novo. - Levanta-te já, maldito!... oh, tristeza da minha vida!...
Novamente, com esforço, Adolfo, melhor ou pior, conseguiu pôr-se sentado na cama. Perpétua fui até à caixa dos remédios e regressou com uma mão cheia de comprimidos.
- Toma! 'Tá aqui o copo de água... agora engasga-te ou vomita que é para me dares mais trabalho ainda!... até era melhor que te engasgasses, para ver se sufocavas e ias desta para melhor... velho empecilho!!
Adolfo levou os comprimidos à boca com a mão que ainda funcionava, trémula. Tomou-os com cuidado e bebeu a água com ainda mais cuidado.
- ...b'i'aado... - balbuciou o melhor que pôde.
- De nada, estropício! Agora vê se ficas aí quieto! Vou para a sala ver TV... qualquer coisa, geme alto...
Perpétua afastou-se sob o olhar mortiço e meio choroso do marido. Sentou-se na sala com a velha cadela aos pés, pegou no comando da TV e ligou no programa favorito que seguia com entusiasmo. Não pôde deixar de pensar no marido e como foi hábil em relegá-lo a uma posição meramente ornamental na sua vida.
"A minha mãe sempre disse: 'Filha, nunca deixes que um homem mande em ti!' e tinha toda a razão. Era o que faltava ter um idiota a dizer-me o que podia ou não podia fazer, ler, pensar ou ir. Eu é que mando em mim, não um artolas armado em chefe." Lembrou-se de seguida do AVC de Adolfo, de como tinha sido providencial para que ele ficasse definitivamente afastado da sua vida. "Bem, ele poderia não vir a ficar incapacitado como está. Felizmente o meu sobrinho Albano é que o assistiu durante o AVC e 'compreendeu' o que é que eu pretendia sobre o estado de saúdo do Adolfo. Se não 'compreendesse' podia ser que a mulher e os colegas ficassem acidentalmente a saber de uns 'comportamentos' e 'hábitos' muito interessantes que ele tinha, e se nao me engano, ainda tem." Riu-se interiormente e, de dentro de uma cesta com revistas que tinha junto ao sofá, retirou do fundo uma pequena garrafa com whisky e deu um pequeno golo, deu um arroto curto, e continuou a ver o seu programa, satisfeita consigo mesma.

Madrugada alta, Cristóvão regressava a casa. Já no quarteirão onde vivia, a algumas portas de distância, surgiram cinco ou seis encapuçados que o cercaram.
- Que querem? - disse, numa voz calma.
- O que é que estás cá a fazer, monte de lixo? - disse um deles, com tom ameaçador.
- Nada que vos interesse... - disse no mesmo tom calmo, tentando seguir em frente. Barraram-lhe o caminho com mais força.
- Sai da nossa terra, insecto! Isto não é lugar para criminosos! - disse um deles, com voz esganiçada
- Drogado! Agarrado duma figa!! - atirou-lhe outro mais enfurecido.
Cristóvão sentiu então o impacto de um objecto contundente na cabeça, sentindo uma dor fina e perdendo os sentidos de seguida. O que se passou de seguida foi um arraial de pancada épico que o deixou num estado absolutamente lastimável. Passados um par de horas, recuperou consciência e tentou levantar-se. Foi com dificuldade que conseguiu e que se arrastou até casa, onde conseguiu chamar uma ambulância que o assistisse.

Depois de alguns dias internado, regressou a casa, com um braço engessado e várias zonas que tinham sido suturadas. A velha casa dos seus avós, onde tinha sido tão feliz em infância, tinha sido o último refúgio de uma vida que lhe tinha trazido recentemente uma profunda tristeza, um inenarrável sentimento de perda e de dor. Todos dias, ao regressar a casa, em silêncio, após uma tarde no trabalho como dono de uma loja de discos em segunda mão e uma noite a prestar auxílio a quem mais precisava nas ruas da cidade grande, pegava numa das poucas coisas que trouxe da sua vida anterior: um álbum de fotografias. Percorria-o religiosamente, página por página, acariciando de quando em vez o rosto daqueles que tinha perdido numa tragédia da qual não eram culpados.

No regresso de uma viagem pelo país, na companhia dos pais e da noiva que amara (e o amara a ele) desde criança, sofrera um violentíssimo acidente de viação, tendo um camião desgovernado ido contra o carro em que seguiam. Os pais morreram de imediato e a noiva ficou em estado crítico, não tendo conseguido resistir após alguns dias em coma. Cristóvão recuperara a consciência e conseguira sobreviver à tragédia com alguns ossos partidos e inúmeras escoriações quando soube do triste destino que os que mais amava sofreram. Durante alguns meses, tentou retomar a sua vida mas tudo à sua volta o relembrava da vida anterior e das pessoas que perdera. Tentando expiar a sua dor e disfarçar as cicatrizes do acidente, dedidira ir-se tatuando de simbolos e cenas dessa vida do passado, levando as fotos da família, da noiva e de situações em que todos estavam presentes aos artistas para que as imortalizassem na sua pele. Quis transportar essa dor também para um plano ainda mais físico e decidira colocar os vários piercings em diversas partes do seu corpo. Mas a dor não partiu, nunca partiu, nunca o deixaria, sabia-o. Extenuado de uma vida de farsa, deixou o anterior emprego, vendeu a casa onde vivia e a maioria do recheio e decidiu mudar-se para a casa dos avós na vila, onde melhores memórias o rodeariam...

Cristóvão pousou o álbum. Deixou-o escorregar, sem reacção, entre os dedos, para cima da cama. Como sempre, tinha os olhos mareados de lágrimas que teimavam em não escorrer pela face, como se nem os seus olhos tivessem a força para exprimir qualquer emoção mas apenas um vislumbre da tempestade que o assolava interiormente. A dor física, a viagem da cidade até casa, mais que tudo, a saudade, a dor que trazia na sua Alma, a indignação do que lhe tinha acontecido, tinham-no extenuado e ele inclinou-se lentamente na cama, deitando-se de lado. No meio da tormenta interior e da chuva que lhe caia das janelas da Alma, Morfeu consolou-o, embalando-o nos seus braços.

3 comentários:

Sílvia disse...

:) Mto bm! Adorei o Cristóvão e detestei a Perpétua (o q se espera tb de uma pessoa c um nome destes!).
Às vezes é mesmo assim teimamos em olhar para o aspecto exterior e deixamos q o preconceito e as suposições tomem formas em nós, formas erradas.... o exterior e o q parece é uma treta e por isso deixemo-nos de treta e vamos começar a conhecermo-nos e aos outros verdadeiramente!

Fiquei maravilhada c a última frase do texto! Tb gostei mto da foto e da citação de hoje!

Mag disse...

Engraçado como a tua história (brilhantemente escrita, devo dizer... impressão minha ou a tua escrita está cada vez mais completa?) foca exactamente a (pouca) importância que as aparências têm (ou deviam ter) na nossa vida... mas afinal tu sempre o soubeste, não é?
M.Y.
Beijo

Joana Canais disse...

Uma história magnífica, que nos envolve do início ao fim...PARABÉNS...Continua a escrever assim que eu continuarei a ler...Obrigada