19 de setembro de 2009


Part of being sane, is being a little bit crazy.

Janet Long (n. 1944)

Men are born with two eyes, but only one tongue, in order that they should see twice as much as they say.

Charles Caleb Colton (1780 - 1832)

A man's silence is wonderful to listen to.

Thomas Hardy (1840 - 1928)

There can be no happiness if the things we believe in are different from the things we do.

Dame Freya Madeline Stark (1893 - 1993)


   O silêncio rodeava-o. Do alto daquela duna, nada e tudo era igual. A areia que se perdia de vista, a cor uniforme, o calor que queimava a pele desprotegida, a regularidade sem sentido das dunas que se levantavam sobre o que seria uma planicie alisada pelo vento. Seria verdade que as dunas eram os seres mais inconstantes e volumosos da terra? Ele olhou para os pés e percorreu com os olhos a crista da duna que lhe servia de promontório. Seria aquilo seguro? Isso agora não importava. Estava ali, tinha uma missão a cumprir, sem dúvida. Qualquer que fosse o pensamento que lhe atravessasse a mente nesse momento, seria mais terrível do que um grão daquela areia numa engrenagem qualquer. Tamanho era o poder da natureza.
   Nunca tinha sentido um calor assim. Nunca tinha sentido calor. O país de onde provinha localizava-se numa latitude bastante próxima dos polos, pelo que o calor máximo que tinha sentido na sua vida tinham sido uns ‘sufocantes’ 28 ºC. Riu-se ao lembrar-se disso e de como era ridículo esse calor comparado com o que sentia agora. Jurou a si próprio que nunca iria voltar a queixar-se do calor que sentiria na sua terra-natal. Tinha passado cerca de 3 horas depois do sol ter atingído o zénite mas o vento continuava a escaldar-lhe a pele, e a fustigar os olhos. Ajeitou melhor o turbante improvisado que tinha feito, observando os nativos nómadas daquele deserto caminhando sob um sol que não lhe era minimamente familiar, e recomeçou a caminhar. Só ele e o som da areia sob os seus pés. Ruído compassado, quase hipnótico. Sentia o calor a quebrar-lhe o raciocínio... mas raciocínio de quê? O que é que era suposto pensar? Naquele sítio, o que interessavam todas as coisas do seu dia a dia, da passagem indolente dos dias que são sempre a mesma coisa, que trazem sempre os mesmos problemas, do pensamento unívoco gerado pela passagem das mesmas vivências, do mesmo consciente colectivo da mesma sociedade, os mesmos valores de sobrevivência?... Ali, o deserto era Deus, tão grande como ele, tão directo e claro como ele. Deus estava naquele som seco dos pés na areia, regular, ritmado. Quando pausava, Deus estava no vento que ocasionalmente soprava por entre as dunas e a rara vegetação rasteira, no reflexo amarelo da luz do Sol na areia. Parecia-lhe um Deus inclemente e brutal.
   Por vezes, esquecera-se porque estava ali. Porque tinha escolhido ir para ali. Porque sentia que ali era o seu lugar. Tinha querido ir para longe de tudo, para longe do ruído que a sua vida diária lhe criava, para longe dos problemas, para longe da dor que sentia ao não poder ser ele próprio, longe dos muros que as outras pessoas levantavam. Ali, vivia rodeado da maior sinceridade, sem muros, sem dor na alma, sem problemas. Tinha trazido mantimentos suficientes para a travessia a pé de uma parte significativa do deserto, durante 2 semanas. Sabia racionar, as suas necessidades não era muito elevadas e o ocasional oásis que encontrava no caminho servia para restaurar as suas provisões de água; mais, sabia racionar a sua energia, parando e protegendo-se quando o calor se tornava demasiado insuportável, caminhando quando a temperatura se mostrava suportável, parando para descansar e dormir assim que anoitecia. Essa foi uma das coisas que aprendeu rapidamente: no deserto não havia candeeiros de rua e era impensável usar uma lanterna toda a noite. Dormia tranquilamente, melhor do que em anos, mesmo sabendo que o deserto continha perigos ocultos. Não sabia porquê, simplesmente deitava-se e dormia.
   O silêncio estava lá, de novo. Precisava de alguém. Precisava de estímulos, de vida inteligente, de uma boa conversa, de energia humana. Mas queria tudo isso sem as coisas estúpidas que vinham com isso, sem as quezílias, os mal-entendidos da linguagem, da net, das sms's, da frustração do dia a dia, dos egoísmos. Queria só o melhor do ser humano... mas seria isso possível? Aquele silêncio... era terrível... mas tinha de continuar a andar, a ouvir aquela secura ritmada, já sem sentido, à beira da loucura. Tinha lido uma vez que o deserto fazia homens e agora sentia na pele o que aquilo queria dizer: mais do que nunca, tinha de manter o juízo no lugar e assumir a decisão que tinha tomado, levá-la até ao fim.
   - Que lugar é este? - perguntou, habituando-se à escuridão.
   - Bir-Hakeim... - respondeu o aldeão.
   A sua travessia tinha chegado ao fim. Antecipara aquele momento das mais diversas maneiras enquanto mergulhara sem hesitação nas areias eternas do deserto. Pensara em mergulhar numa banheira de água, invadir um bordel, ficar horas a fio a falar com o primeiro ser humano que encontrasse. Nada disso. Ficara em silêncio, olhando nos olhos simples daquele velho, procurando-lhe algo sem saber.
   - Quer um copo de água, senhor?
   Assentiu com um gesto. O idoso proferiu umas palavras em árabe e, momentos depois, apareceu uma rapariga com um pequeno jarro com água. Simples, sem artifícios, com olhos de timidez mesclada da ferocidade do deserto. Nada. Bebeu a água, sorvendo-a em pequenos tragos tentando encontrar a sua essência e procurou mais uns minutos algo que não poderia explicar nos olhos do idoso.
   - Que aprendeu no deserto?
   Silêncio.

2 comentários:

Sílvia disse...

Olá! Passei por aqui p viajar um pouco nos teus textos mas vejo q tens estado ocupado c outras coisas...ou não...

Beijos

IM disse...

Hélio,
Como sabes vou lendo o que tens por aqui devagar, e hoje parei neste porque fala do silêncio... aquele que em certas alturas da vida devemos ouvir... e esvaziar a alma, o coração... para prosseguir a viagem!
Este destino seria quase uma benção à rotina do stress diário.
Excelente texto!

Beijos