7 de setembro de 2009


We must be willing to let go of the life we have planned,
so as to have the life that is waiting for us.

E. M. Forster (1879 - 1970)

ou...
We're like actors, turned loose in this world to wander
in search of a phantom, endlessly searching
for a half formed shadow of our lost reality.
When others demand that we become the people they want us to be, they force us to destroy the person we really are.
It's a subtle kind of murder.
The most loving parents and relatives commit this murder
with smiles on their faces.

Jim Morrison (1943 - 1971)

ou ainda...
If you hear a voice within you say "you cannot paint,"
then by all means paint, and that voice will be silenced.

Vincent Van Gogh (1853 - 1890)

Estava sentado à janela. Na paisagem que contemplava, os campos iam alternando com as aldeias e as vilas, os rios com as estradas e pontes, os rebanhos com as pessoas. Tinham-lhe dito que a viagem iria ser longa, um pouco aborrecida até, mas ele não se importava. Tudo o que importava era o seu destino, o que iria fazer, por isso, mais valia aproveitar a viagem. E de aborrecida não estava a ter nada. Tudo era novo, tudo era grande, tudo brilhava com uma luz de novidade que dava um encanto especial a tudo quanto os seus olhos poisavam. Até os animais que via de passagem eram mais bonitos que os da sua terra ou, pelo menos, assim lhe parecia: as vacas mais gordas e com os úberes mais inchados, os cavalos mais luzidios, as ovelhas com mais lã e maiores, os porcos mais limpos e bem cuidados, os galos e galinhas com a crista mais encarnada e com a penugem mais vistosa, os gansos mais alvos. " 'A galinha da vizinha é sempre melhor que a minha', é preciso não esquecer isso...", e com este dito sossegou a sua vontade de ter vivido por ali, por aquelas terras onde passava agora, e não na sua terra natal.
A sua terra. Era bem simples. Um punhado de casas no alto de um monte, uma capela com um pequeno largo, um cafézito (por iniciativa do sr. Alcântara, ex-emigrante inconformado com o facto do café mais próximo estar a 10 km. "O café mais caro que eu bebo é aqui 'no' Portugal!") e uma escola, já abandonada há largos anos. De facto, nem Daniel lá tinha andado, tendo que fazer os tais 10 km que o sr. Alcântara se queixava até à sede da freguesia. Depois foi ainda pior, ao ter que se deslocar até à sede de conselho, a 40 km daí, por estradas que nem lembravam ao diabo... ou antes, lembrar lembraram, o problema foi "ele" ter inspirado os engenheiros que as projectaram, com certeza. Naquelas manhãs cristalinas de inverno, indo na caixa da velha carrinha do pai - ou pior, de motorizada - ou enjoava ou perdia um membro com o gelo. Foi duro. As palavras de raiva do pai - "Agora a andar p'ra trás e p'ra frente com o menino, p'ra ele andar a limpar o cu aos bancos da escola... devia era andar a limpar o cabo da enxada co'as mãos, qu'isso é que é trabalho!" - Mesmo assim, no meio de tanta dureza, nos melhores dias, conseguia apreciar a beleza dos campos em redor, cobertor de grossa camade de geada ou da ocasional neve. Parecia que vivia noutro lugar, o que sempre ajudava a atenuar aquele perene sentimento claustrofóbico de nunca poder sair dali. Uma prisão de grades invisíveis. Sonhava um dia sair dali, para sempre, correr mundo, ver outras terras, o que estaria para além do mar que tanto lhe falavam e que nunca tinha visto uma gota dele sequer. Os pais, já de certa idade, também não - o maior curso de água que tinham visto, era o rio da vila. Daquela terra nunca mais quereria saber, excepção feita dos pais, claro, que não tinham culpa de nunca terem podido sair dali, daquela vida de lama pelos joelhos, estrume, pó, fome (quantas vezes...) e ignorância.

- Pai, quero ir para a cidade grande...
- Tu queres é um par de estalos nessa cara, nã' tarda! Já viste o serviço que 'tás a fazer?
Distraindo-se com os seus sonhos de ir mais além, de sair dali, tinha deixado cair o balde das batatas e uma das cabras que por perto pastoreava, atirou-se logo ao tubérculo.
- Sai daí, xô!! Vai... ala!!
A cabra levou a batata na boca e desapareceu. Daniel suspirou.
- Que é que foi rapaz?... Vá lá a ver que há 'munta' batata p'ra apanhar!
- Já vai, já vai, 'mê' pai...
Mergulhou nos seus sonhos de novo, com um olho na realidade e outro na fantasia. Minutos mais tarde, foi o pai que o abordou.
- Que história é essa de quereres ir p'ra a cidade? - perguntou enquanto andava debruçado a apanhar batatas.
- Oh... coisas da 'inha cabeça... - encheu mais um balde de batatas.
- ...tua cabeça não, Daniel Zé. Eu conheço-te 'munto' bem. Quando começas a congeminar, nã' descansas 'enquante' nã' conseguires.
Daniel sorriu. O pai conhecia-o bem.
- Mas ind'é cedo... 'Inda não acabei de estudar, p'ra ter um pouco mais de segurança p'ra quando p'ra lá for trabalhar.
- Esses estudos, esses estudos... e quando é qu'isso acaba?... Já andas a estudar há sei lá quantos anos e ainda 'nã' te vi com ideias de formar família... 'nã' te chega o exemplo de casa? Eu e a tua mãe já nos casámos tarde e até que te tivessemos foi o cabo dos trabalhos... E depois p'ra que é que serve tant'estudo??... no 'mê' tempo 'nã' s'ia à escola e uma pessoa aprendia a trabalhar na 'mêma'... e asinha!
- Oh 'mê' pai, não é nada disso... vocemessê 'nã entende... não ando a estudar pra isto...
- 'Atão' é p'ra 'queia', rapaz?
- Eu... nada... esqueça...
- Ahhhhh... isso nã' me 'chêra' bem... Daniel, filho, a tua terra é aqui... foi aqui que nasceste, foste aqui criado... é aqui que tens as tuas coisas, a terra, a criação... sempre foi aqui c'a nossa familia se deu, desde que nos lembramos... ist'é uma riqueza maior c'áquilo que pensas!
- Eu sei, 'mê' pai... mas à medida que eu fui avançando na escola, fui sabendo de mais coisas, c'a vida 'nã' é só isto c'a gente aqui tem! Há mais terra p'lo mundo, uma vida melhor... 'ê' comecei a sonhar co'a cidade grande, em correr o mundo, em ter essa vida melhor...
- A escola, a escola... essa coisa só dá é despesa e só traz infelicidade... andam só a pôr coisas na 'miolêra' da cachopada, a fazê-los pensarem que são melhores c'ós outros. Depois saem de lá e fodem-se quando dão c'os cornos no duro...
- Oh... olhe que vocemessê 'tá enganado... nã' é bem assim...
- Ah nã' é? 'Atão' 'nã' leves a manta que 'nã' é preciso... ohhh rapazinho, tens muito que aprender... Leva mas é o balde p'ro tractor e mexe 'mazé' essas unhas que 'háqui' muito que fazer...


Anos mais tarde, Daniel acabou o secundário. Apoiado por alguns professores, decidiu seguir para Engenharia Agrícola. Não foi uma situação fácil...

- Mê' pai... eu tenho andado a falar com os 'mê's professores e eles acham que eu tenho capacidade para ir para a Universidade... - disse ele num serão, perto do final do ano.
- Ires p'ra onde?... - inclinou-se no cadeirão.
- P'ra Universidade... estudar pr'a ser Engenheiro... - disse, receoso.
- Engenheiro?... Tu? - disse a meia voz, incrédulo - Quem é que te meteu essa coisa na cabeça?... Alguma vez tens cabeça p'ra seres engenheiro?
- Os meus professores dizem-mo... e eu até tenho notas razoáveis...
- E quem te disse que podes ir? - disse, começando a levantar o tom gradualmente. Daniel remexeu-se no cadeirão, desconfortável - Quem te disse que tens condição p'ra seres sustentado lá? Que podes sequer sair de casa assim, como queres?? Diz-me Daniel, DIZ-ME!!...
- Eu... sei lá. Os meus professores dizem que tudo se arranja...
- "Tudo se arranja"?... - riu-se com escárnio - Coitadinho, oh coitadinho, eheheheh... - e, mudando de tom rapidamente - eles querem é ver-te cair, estatelares-te no chão para depois gozarem contigo...
- Ah sim?? E o que é que eles têm a ganhar com isso?... Dinheiro é que 'nã' é de certeza!
- Errr.. hmmm... - virou a cabeça para o lado e voltou a olhar para ele - Mas o que tu conheces das pessoas para saber o que é que elas têm a ganhar ou não?... Há pessoas p'ra tudo, Daniel, P'RA TUDO!
- Olhe, 'mê' pai: nunca na vida lhe faltei ao respeito e sempre lhe fiz o que quis; ajudei-o sempre que pude, até ao limite. Mas a vida é minha, só minha. Por isso, so lhe pergunto isto, uma vez: tenho o vosso apoio?
- A vida é tua? TUA? Enquanto aqui viveres, tu aqui fazes o que eu mandar, ouviste bem rapazinho? E se eu disser que 'nã' vais, não vais mesmo, e nem t'atrevas a desobedecer porque ainda sou homem p'ra te dar umas bordoadas nessa cara, ouviste bem??
O pai estava possesso. Daniel nunca o tinha visto assim. Nessas alturas sabia que o único remédio era não dizer mais nada. Saiu, com ímpeto, para o calor da noite.
Dias mais tarde, voltou a fazer a mesma pergunta aos pais. A mãe, como sempre, achava que não tinha voto na matéria, só torcia o avental com a tensão do momento. O pai declinou qualquer apoio. Não o olhou na cara. Disse que estava por sua conta e risco, se era assim que ele queria, que se desembrulhasse. E que, insistindo nessa ideia, não voltasse aquela casa enquanto ele fosse vivo.


Daniel foi. Partiu, com lagrimas nos olhos e um punhal no coração, sem olhar para trás. Ao saber que tinha sido colocado na Universidade da capital, tratou, com a ajuda dos professores e de alguns funcionarios da câmara da vila, de arranjar quarto na residência universitária.

Saiu do comboio e pousou as malas. Ficou extático a olhar para a enorme estrutura metálica que compunha a estação. Nunca na sua vida tinha visto algo assim tão... colossalmente grande... "Quer dizer, já tinha visto nos livros mas... ao vivo... é completamente diferente...".
Tirou um papel do bolso e dirigiu-se à praça de taxis. Daí pediu para que o levasse à residência universitária. Era um edifício moderno e havia outros colegas a chegar nesse instante.
- Olá! És novo por aqui, não és?
- Sim... - disse, desconfiado.
- PESSOAL!!! TÁ AQUI UM CALOIRO!!!
Daniel já sabia que isto ia acontecer. Os professores tinham-no avisado e ele já sabia que era só uma brincadeira que eles faziam ao pessoal novo na faculdade. Decidiu falar pouco e só quando lhe mandavam. Após a brincadeira, encaminharam-no para o quarto, tendo em conta as informações que lhe tinham dado antes e instalou-se.
Os primeiros tempos foram dificeis, obviamente. Sem o apoio dos pais, candidatou-se a uma bolsa de estudo e teve que encontrar trabalho para pagar o resto das propinas. O seu tempo era dividido entre o trabalho e o estudo, que incluia aulas e trabalho de casa: muitas vezes só dormia 3 ou 4 horas por noite. Mesmo assim, o seu desempenho não foi mau.

Os anos foram passando. Daniel sentia falta da sua terra natal. Como não podia? Era a SUA terra! Ela estava-lhe no sangue! Por vezes, na rua, no Verão, sentia o aroma da terra quente, o cheiro da flores da sua terra. Parecia-lhe ouvir, de tempos a tempos, as vozes das pessoas da sua terra trazidas pelo vento. Sempre que lhe perguntavam de onde era, dizia sempre o nome da aldeia de onde era, com todo o orgulho, e nessas horas quase que podia sentir as palmadas nas costas dos seus conterrâneos, inchados de orgulho. Nas férias, conseguia, a título excepcional, manter o seu quarto na residência, sendo que as refeições ficavam por sua conta.
Custou-lhe acabar o curso. Sobretudo na Queima das Fitas, em que via os pais de toda a gente a celebrar com os filhos. Ele estava só. Doía, mas essa dor só lhe deu mais força para continuar.

Estava sentado à janela. Na paisagem que contemplava, os campos iam alternando com as aldeias e as vilas, os rios com as estradas e pontes, os rebanhos com as pessoas. Tinham-lhe dito que a viagem iria ser longa, um pouco aborrecida até, mas ele não se importava. Tudo o que importava era o seu destino, o que iria fazer, por isso, mais valia aproveitar a viagem. E de aborrecida não estava a ter nada. Tudo era pequeno, pequeníssimo, como alfinetes: os campos, pequenos remendos; as pessoas, nem se viam; as estradas como pequenos riscos brilhantes no meio do chão; as cidades como um chão coberto de mosaico ao qual confluiam, e no qual rabiscavam, os riscos brilhantes. "Como somos pequenos, tão pequenos... se é assim que Deus nosso Senhor nos vê...", pensou, completamente espantado. Riu-se. Já não pensava daquela maneira havia algum tempo, sobretudo estando já na cidade e trabalhando há alguns anos numa empresa importante. Mas, afinal, o menino que ele fora, o pequeno aldeão da terra gelada de Inverno e ardente no Verão, o caloiro desnorteado e jovem Engenheiro-Chefe, ainda trazia a terra a circular-lhe nas veias. Por momentos o coração gemeu de saudade. Pensou "E se eu tivesse cedido e tivesse ficado em casa, continuado a mando dele?... que seria de mim?... Seria mais feliz?... Estaria satisfeito com a minha vida?...Não sei, e creio bem que nunca o saberei...". Riu-se novamente, olhando para a janela. Mesmo sendo tão pequeno como os que não conseguia ver lá em baixo, ele era diferente. Ele era Seu.

1 comentário:

Sílvia disse...

Mais uma boa história! :)Por vezes é preciso sacrifícios para conseguirmos o q queremos, se o queremos muito, como o Daniel e mesmo sem o apoio de quem devia gostar de nós incondicionalmente, ele conseguiu ser o q ele queria! Talvez seja essa a maior lição q tive do meu pai "sê tu própria", lembro me sempre destas palavras dele quando questiono as coisas e até a mim própria...
Dia feliz para ti e q ctnuem as boas histórias....