9 de setembro de 2009


Your pain is the breaking of the shell
that encloses your understanding.
Kahlil Gibran (1883 - 1931), "The Prophet"

To him who is in fear everything rustles.
Sophocles (496 BC - 406 BC), "Acrisius"

The gods help them that help themselves.
Aesop (620 BC - 560 BC), "Hercules and the Wagoner"

No price is too high to pay for the privilege of owning yourself.
Friedrich Nietzsche (1844 - 1900)

O cheiro das outras pessoas no autocarro irritava-a. A rotina das coisas irritava-a. Pensando nestas coisas, acabou por não perceber o que é que a irritava mais, se o cheiro, se o facto de ter que cheirar as mesmas pessoas (ou quase) todos os dias. Os solovancos que o autocarro da irritavam-na. As conversas em voz alta irritavam-na. Os encontrões irritavam-na. As constipações que as pessoas traziam e 'partilhavam' com toda a gente, ou mais pessoalmente, de uma forma mais ou menos higiénica irritavam-na. A lista de coisas irritantes continuava.
Chegou a casa e ainda passou pelo supermercado para ir comprar algumas coisas. Enquanto esperava na fila para pagar, olhou para um expositor com uma série de livros de auto-ajuda. Os títulos eram sugestivos e parecia haver um para cada problema que as pessoas tivessem: depressões, desgostos, angústia de viver, stress, toda uma panóplia de sugestões, ajuda fácil, ali à mão de desfolhar. Flávia abanou a cabeça, desdenhosa e voltou a sua atenção para outro expositor, desta frita, de imprensa cor-de-rosa. Chegou mesmo a desfolhar uma mas pousou-a e avançou na fila.
Chegada a casa, cansada, foi saudada pelos seus três filhos. O marido ainda ia demorar mais uma boa hora pelo que começou por passar revista aos trabalhos de casa que as crianças traziam para fazer. Algumas recomendações algo impacientes depois, sentou-se a descansar um pouco antes de começar a fazer o jantar. Enquanto saboreava este merecido descanso, o marido chegou. Saudou-a com um beijo e foi pousar o saco de desporto e a pasta que trazia. Sentou-se um pouco com ela e depois seguiram os dois para a cozinha, preparar o jantar em conjunto. Desta rotina ela não se cansava. Amava profundamente o marido e tinha-se tornado o seu ritual habitual, durante a semana, preparar as refeições em conjunto, aproveitando para falar do dia de trabalho, das vitórias, derrotas, frustrações e regojizos e de algo de diferente ou extraórdinário que tivesse acontecido fora do trabalho. A conversa daquele dia não fugia a esta regra.
- E depois o Carlos pegou no molhos de relatórios... - riu-se com um riso surdo, e tomou fôlego - ... e atirou-os à cara da Fátima! Havias de ver a cara daquela megera! Nem queria acreditar!!... - riu-se mais um pouco com o mesmo riso surdo - Ainda foi atrás dele para lhe pedir explicações e a ameaçá-lo com um processo disciplinar mas o gajo tomou a dianteira e disse logo que não era preciso, que se despedia, que não estava mais para aturar uma cabra como ela. Bem, havias de ver, o pessoal nem sabia para que lado se havia de virar para se rir sem dar nas vistas... Foi péssimo. A estúpida nem sabia onde se havia de meter! Estava vermelha de raiva e de despeito! HAHAHAHAH!!! - disse Lourenço, rindo a bom rir.
- Só teve aquilo que merecia! Essa ordinária já há muito ano que anda a abusar da sorte, pelo que me dizes. A aproveitar-se do trabalho dos outros, a dá-lo como seu, a oprimir-vos com ataques de fúria, sem saber de onde vêm, a atacar-vos e a fazer-vos ficarem mal vistos nas reuniões de departamento, entre outras atitudes absolutamente estúpidas... Também não admira, geralmente pessoas burras, presunçosas e incompetentes como ela...
- ... e putas... - interrompeu-a.
- ...sim! e putas!, como de certeza que ela é, é que têm esse tipo de atitudes! Os teus chefes não sabem de nada dela?
- Os meus chefes foram todos "corridos" por ela. Ela fez-se a cada um deles quando estava a acabar de tirar o curso, ainda ela era uma simples secretária a trabalhar na contabilidade. Ela tem-nos a todos na mão. Ela pode ser incompetente mas não é totalmente burra. O máximo que lhe fazem é chamá-la à atenção em privado...
Flávia abanou a cabeça, sentindo-se revoltada.
- De facto, este mundo está cada vez mais ao contrário. Quem mais deve, é quem menos teme. Os ladrões andam à solta na rua e quem manda anda atrás da gente honesta. São os crimes, é a crise, a corrupção, são as doenças, os acidentes de carro, é o clube que não ganha, é o pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico e poderoso. Qualquer dia nem vale a pena sair de casa... ou se sair, sai pela janela! P'ra quê ir trabalhar?? Uma pessoa mata-se cada vez mais a trabalhar e se até é competente metem-no no olho da rua, a ele e mais uns quantos, só para pôr lá um amigo ou uma gaja como a tua chefe a 'comer' por eles todos e mais ainda até. E querem que o país ande p'ra frente.
- Isto... é muito complicado...
A refeição ficou pronta pouco depois, a família jantou, deitaram-se, Flavia e Lourenço fizeram amor e adormeceram.

A manhã seguinte não trouxe surpresas nem gestos fora da rotina que os embalava naquela vida morna. Após levar os miúdos ao colégio e ao infantário, dirigiu-se ao emprego. Chegou ao seu posto de trabalho e passado um pouco começou a haver uma agitação na sala. Levantou-se do seu cubículo e foi saber do que é que se tratava.
- Que é que se passa, Almiro?
- Flávia, já viste o teu e-mail?
- Sim, vi-o há pouco qdo cheguei! - disse, assertiva.
- Não, não é de 'há pouco' que estou a falar. É de agora! Já o viste?
- Não, não estou sempre a ver o e-mail. Mas porquê? - disse, começando a ficar assustada.
- Então vai lá ver, que é melhor estares sentada.
Flávia voltou ao seu posto de escrita e abriu o e-mail. Tinha acabado de receber pela rede interna uma missiva enviada pelo Departamento de Recursos Humanos, com o conhecimento da Administração, que a empresa tinha aberto o processo de falência, com data de entrada em vigor a partir do dia seguinte - pondo isto em miúdos, a empresa ia fechar - ela estava no olho da rua.
Levantou-se e dirigiu-se aos Recursos Humanos. Lá, uma multidão em fúria esperava confirmação da mensagem que lhes tinha sido enviada e, a ser verdade, por mais dados relativos ao despedimento. Passado uns minutos, uma das secretárias aproximou-se do ajuntamento e confirmou o que se temia: a fábrica ia fechar, uma representação do sindicato tinha sido chamada para negociar e pedia-se agora que se reunisse uma comissão de trabalhadores para se juntar às negociações do processo de despedimento colectivo.
Tudo aquilo era surreal demais, pensou. Não havia motivos para tal, a empresa sempre teve pedidos, sempre teve encomendas de trabalho, era impossivel ter aberto falência. Pensava enquanto caminhava de volta ao seu cubículo, onde trabalhou durante quase dez anos, afincadamente, dando tudo quanto podia pelo trabalho em mãos que tivesse nesse momento. Não, não podia ser, não era possível, tinha de ser uma invenção. Sim, era isso, era uma maneira de verem quais eram os colaboradores mais subversivos de maneira a aliviar o número de empregados, para cortar despesas com o pessoal. Só podia ser isso. Pegou no que sstava a fazer anteriormente e no trabalho pendente e continuou a trabalharnormalmente, mas desejando a cada segundo que tudo aquilo fosse o que pensava ser e não o que lhe tinham dito que era.

À ida para casa a rotina cumpria-se, como de costume. Mas agora tudo era vazio. O cheiro das pessoas, os solavancos, os encontrões, as tosses e os espirros, as filas, nada disso a irritava mais. Era uma sensação estranha, um misto de vazio com alegria e com decepção. Aliás, não sabia muito bem o que sentir, qual o sentimento adequado para aquela situação tão inverosímil. Chegando a casa com os mais pequenos, arranjou maneira de os entreter ("Logo hoje não têm trabalhos de casa para fazer!...", pensou) e foi para a cozinha começar a fazer o jantar. Lourenço chegou pouco depois, como costume, e beijou-a.
- Amor, viste hoje as notícias? - perguntou-lhe Flávia, numa voz calma de tensão.
- Não!... - disse com alguma surpresa na voz - O que é que se passou?
- Não sei muito bem... lá na empresa hoje... disseram-nos que a empresa tinha entrado em falência e que estavam em negociação para o acordo colectivo de rescisão.
- O quê??? - sussurrou ele - Mas... como assim?... Falência?... Estás a dizer-me que vão despedir toda a gente?... Como é que isso é possível? Tu nunca notaste nada?? O que é que eles alegaram?? Diz-me!
- Não sei de pormenores... - disse, de olhar perdido no espaço - De manhã recebemos a noticia por e-mail. A Sónia dos R.H. veio à porta e confirmou que estavam a negociar com o sindicato e que queriam uma comissão nas negociações. Eu continuei a trabalhar e à hora de almoço disseram-nos que as negociações estavam bem encaminhadas. A meio da tarde anunciaram que tinham chegado a acordo: três salários por ano de trabalho efectivo. No meu caso, trabalhei oito anos, recebo vinte e quatro salários de compensação. Não disseram quando o iam pagar, mas prevejo que será depois do processo de falência se encaminhar para o fim, já depois de terem vendido material da empresa.
Lourenço mostrou-se estupefacto com tudo aquilo e andava de um lado para o outro da cozinha.
- Não posso acreditar... mas como?... OK, nem tudo é mau, vais ser relativamente bem indemnizada mas não sabes quando vais receber... E depois, da maneira como dizem que as coisas estão, quase de certeza que não vais conseguir emprego tão cedo... o que é que vamos fazer, Flávia?...
- Não sei, Lourenço, não sei de nada... não me faças perguntas agora, por favor... - disse, a meia voz, com ar fatigado - eu ainda mal acredito, estou em estado de choque.
Até à refeição, durante a refeição e até se irem deitar ficaram num silêncio só cortado pelas conversas que tiveram com os miúdos. Não lhes contaram, com receio que eles se enervassem. Era melhor assim, concordaram. Enquanto estavam na cama, tentaram delinear estratégias futuras como gerir o facto de passar a haver só um salário em casa, e, posto isso, adormeceram. Não foi um sono tranquilo para Flávia - acordou imensas vezes durante a noite, em angústia, com um medo que a gelava por dentro, sem saber o que fazer, como iria ser o futuro, sentindo-se já inútil. Para mais, começava a sentir um sentimento que tinha falhado, que era uma falhada, que aquilo tinha acontecido por culpa sua.

Amanheceu novamente. Quando Lourenço se levantou, já ela estava a pé há quase uma hora, sentada em frente à janela.
- Que vais fazer hoje, querida?
- Vou até à empresa saber desenvolvimentos. Espero lá estar à hora da entrada... quer dizer, à antiga hora de entrada... - disse, desviando o olhar para a rua. Lourenço afastou-se, indo preparar-se para mais um dia de trabalho. Flávia continuava a olhar para a rua. Olbservava as pessoas que passavam, de carro, a pé, a caminho do seu emprego ou com outro destino, mas, definitivamente, com um propósito. Observava as crianças de mão dada aos pais e pensava se os seus pareceriam assim tão tranquilos e alegres, quando tomassem conhecimento da situação, como os que observava agora a passarem na sua rua. Pensava também se eles sabiam que os seus pais poderiam estar desempregados ou não. Pensava se aquelas pessoas, de ar tão obstinado a andarem na rua, estavam mesmo empregadas num sítio qualquer. E quantas teriam, estariam ou iriam passar pelo tormento, pelo terror que ela estava a passar naquele momento.
Depois de dado o pequeno almoço aos miúdos, Flávia levou-os até à escola. Seguiu depois para a empresa, como sempre e, ao chegar, deparou-se com uma manifestação enorme à porta, que estava fechada a cadeado, com bandeiras negras e faixas. A polícia também lá estava. Com medo que tudo aquilo pudesse degenerar em algo violento, chegou-se ao pé de alguns colegas e perguntou o que se passava.
- Foi o sindicato que quis este aparato todo. Decidiram isto depois de terem chegado a acordo, mais ao fim da tarde. Lembraram-se depois de perguntar como iriam obter o dinheiro para pagar aos empregados e eles disseram que iam vender as máquinas. Eles não gostaram de ouvir isso, acharam que a fábrica tinha dinheiro em caixa suficiente para assegurar as compensações sem ter que se vender património e decidiram bloquear a entrada da fábrica para não levar as máquinas. Acreditam que, mesmo assim, a empresa é viável num futuro próximo. - disse Renato, que pertencia à Manutenção.
- Pff... típico de sindicalistas... - disse ela com desdém - Já agora vou aqui ficar para ver no que é que isto dá, mas se vir o pessoal a agitar-se demais, saio daqui a correr.
Ficou lá até à hora do almoço, pelo que decidiu ir ter com Lourenço, para lhe contar os últimos desenvolvimentos. Além disso, há tanto tempo que não almoçavam juntos durante a semana, que iria ser bom variar.
Chegou ao emprego do marido e esperou à saída por ele. Alguns minutos mais tarde ele saiu, ficando muito surpreendido por ver Flávia.
- Querida... por aqui?
- Sim! - sorriu - Fui à empresa e como nao tinha nada a fazer por lá, decidi vir ter contigo para um almoço, só nós os dois!
- Oh, querida... devias ter dito antes! Vou almoçar com um cliente agora, não vai dar para almoçarmos juntos...
- Bolas... Pronto, se é de negócios, não há nada a fazer... Posso ficar a fazer-te companhia até ele chegar?
- Flávia, eu queria ir andando ter com ele, se não te importas... - beijou-a - Eu depois compenso-te! Bom almoço! Até logo! - e afastou-se.
- Até logo... Bom almoço!
Ela caminhou em direcção ao carro e entrou. Procurou o baton do cieiro e ajeitou o espelho retrovisor para o efeito. Assim que acabou de retocar, e repôs o espelho, viu algo que juraria impossível, uma alucinação: Lourenço estava à porta do emprego, de novo, e acompanhado. Uma mulher. Pensou que seria o cliente que ele lhe tinha falado mas, ao beijarem-se, todas as esperanças esfumaram-se. Durante largos segundos ficou a olhar a cena, sem ter noção do que fazer mas, sem saber a que misteriosa força o conseguiu, decidiu então confrontá-lo. Saiu do carro, muito direita, de expressão firme e carregada. Estava a ser movida a orgulho e fúria, uma fúria com a força dos doze anos de casados que tinham.
- Parabens, Lourenço. Muitos parabens. Não sei que hei-de pensar, sabes?... - cruzou os braços e falou com uma calma temperada a ódio - Se és tu que és um cara de pau canalha e sem carácter, ou se sou eu que sou tão estúpida que pensei ser a mulher da tua vida.
- Paixão?... Quem é esta?... - disse a outra mulher, com uma fala afectada por uma óbvia vida de mimos e luxos.
- Quem é esta?? Lourenço... eu nao acredito... ela nem sabe que tu és casado comigo?...
- Calma Flávia... vamos todos ter calma, porque tudo se explica... isto não é o que parece...
- ... bem, ao menos não és só cara de pau comigo!... Pelos vistos é mesmo uma falha de carácter... se tu o tivesses, é claro, meu grandessíssimo cabrão filho da puta!
- Lourenço... eu não acredito... tu és casado?... Então... então... e aquilo que falámos, de vires comigo para a tua casa nas Caraíbas e vivermos juntos até ao fim dos nossos dias?... estavas a mentir-me? - disse a 'fashionista', estupefacta.
- Não, coelhinha... na-a-ão era mentira... eu-eu-eu ia mesmo partir contigo para ficarmos juntos... só precisava de tratar dumas coisas...
- Pois, umas coisas, tais como o teu casamento e os teus três filhos em casa, não é?... - disse Flávia a começar a exasperar-se - Lourenço... por favor... por uma vez na vida, sê um homenzinho e diz a verdade a todos, a começar por ti próprio...
- Flávia... não... Coelhinha, espera, eu explico... Flávia, eu vou explicar... é que isto..
- CALA-TE Lourenço! - gritou ela, num repente de raiva - Ouvi-te durante doze anos... estive sempre lá para ti... tive três filhos por ti, passei pelas piores dores do mundo três vezes, por ti, por nós... - com uma calma súbita - Agora, CHEGA!
Com um pontapé bem aplicado e forte nas partes baixas, ele deixou-se cair no chão, gemendo de dor. Ela lançou-lhe um último olhar de desdém e concluiu:
- Obrigado, Lourenço... por nada. - e virou costas.

Lourenço tentou à noite, novamente, arranjar uma explicação e tentar que Flávia ouvisse, mas, obviamente, em vão. Flávia mostrara-se irredutível e, no papel de esposa traída, achava que quem tinha de sair de casa, até o assunto ser resolvido em tribunal, era ele.
O processo de divórcio começou, então. Após algumas sessões com o juiz do processo e diversas tentativas de reconciliação, chegou-se a uma última sessão para a deliberação final.
- ... e goradas que foram todas as tentativas de reconciliação, não tenho outra alternativa senão deferir o pedido de divórcio feito por Flávia Costa de Azevedo a este tribunal. Visto haverem posses e, mais importante, descendentes de idade menor, houve que deliberar sobre a justa divisão de bens e o processo de tutela dos menores. Assim, e atendendo a que uma das partes em conflito se encontra temporariamente em situação de desemprego, decidimos que a casa passará a ser propriedade de Flávia Costa, assim como toda a mobília que a guarnece. Os restantes bens adquiridos por cada parte serão distribuidos consoante quem os adquiriu ou outro qualquer critério, desde que de mútuo acordo. Em relação aos menores, é meu firme crer, apoiado por pareceres de técnicos competentes na área psico-pedagógica, que os menores devem estar, na esmagadora maioria dos casos, à guarda da mãe. Este facto torna-se ainda mais relevante atendendo à atitude leviana e displicente pela parte do pai em relação à instituição família. É, assim, deliberação deste tribunal entregar a custódia parental dos menores ao cuidado do pai. Esta situação é, no entanto, e sublinhe-se, temporária. Assim que a mãe tiver encontrado um novo emprego, os menores deverão ser entregues de imediato à mãe. Estas deliberações entrarão em vigor de imediato.
No final da audiência, Lourenço tentou aproximar-se de Flávia mas sem sucesso.
- Depois ligo-te. - disse friamente e sem o olhar de frente.

Os tempos seguintes foram terríveis para Flávia, como se adivinhava. Sem emprego, sem os filhos por perto senão por dois fins-de-semana por mês, com uma boa parte dos amigos a afastarem-se, sentiu a sua vida escapar-se-lhe pelos dedos. A sua própria mãe atribuia-lhe uma parte das culpas.
- Ninguém tem toda a culpa. Se ele fez o que fe foi porque alguma coisa falhou da tua parte, para que ele fosse procurar fora de casa.
De todas as pessoas, nunca esperara que a própria mãe lhe dissesse aquilo. O último dos apoios fugia-lhe. Frases como aquela encontraram ressonancia dentro de si, em algumas das dúvidas que ela própria tinha desde que tudo aquilo começara. Essa era, obviamente, uma delas, julgando de seguida a sua competência como mãe, como trabalhadora e, inevitavelmente, como pessoa, como ser humano. Não deorou muito tempo até que começasse a achar que não valia a pena levantar-se de manhã e, quase imediatamente, que não valia a pena viver... Vivia num limbo de realidade, em que já nao sabia o que era real, e o que era surreal, o que era sonho, o que era imaterial, o que era possível e o que era impossível... Já não procurava emprego, já não se alimentava bem, não cuidava de si e muito menos da casa. Passava dias inteiros a chorar e, quando se cansava, ficava a olhar para o tecto, indefinidamente. Não havia horas, não havia noite nem dia, não havia fome, não havia sede. Só havia dor. Uma dor tremenda. Uma dor que não cessava, que tornava todos os segundos iguais, uma dor que se tinha agarrado ao seu coração, ao seu corpo, à sua alma como alcatrão, como resina para a qual não havia solvente, que alastrava e se empregnava em cada cova, cada fissura, cada milímetro quadrado de ser, cobrindo toda a luz, causando a maior dor possível e que enquanto houvesse dor, assim continuaria até que, no final, não sobrasse nada, absolutamente nada.
Chegou o dia em que nem com os filhos conseguiu estar. Sentia-se demasiado fraca, demasiado 'menos'. Assim que fechou a porta, com a imagem do desânimo das crianças gravada na alma, sentiu que só havia uma coisa a fazer: por fim á sua miserável vida.

Deixou tudo preparado, todas as instruções cuidadosamente escritas numa carta colocada em cima da sua cama. Despida, procurou no forno o seu fim... Bateram à porta. Flávia estava já inconsciente. Bateram de novo. Minutos mais tarde, a porta foi arrombada e Flávia retirada do forno.
No dia a seguir, acordou numa cama branca, no hospital. Ao início, toda aquela brancura fê-la pensar que estaria no céu, mas, à medida que os seus olhos se foram habituando, percebeu que estava viva... ainda... e com uma grande dor de cabeça. E náuseas, muitas muitas náuseas... Dias mais tarde teve uma visita. Lourenço.
- Como estás?
Nao respondeu.
- Bem me parecia. Bem, pensei em te vir dizer o que é que se passou e que, agradecendo o facto de estar viva, voltasses a ter o mínimo de consideração para voltares a falar comigo.
Flávia era o silêncio.
- Ok, já vi que perco aqui o meu tempo. Antes de me ir embora devo dizer-te que fui eu quem ligou para os bombeiros e te salvou. Adeus.
Viu-o afastar-se mas manteve-se em silêncio. Absurdo. Completo e louco absurdo, disconexo da realidade. Mais uma das incoerências de Lourenço, com certeza, mais uma vâ tentativa de a reconquistar.
- Que belo pedaço de homem... como é que o deixou escapar?
- Escapar?... humpf...
- Não foi?... E como é que alguem se mata com um homem assim, Deus do céu?!
- Pode ficar com ele todo só para si, se quiser... e se conseguir, enfermeira Marcia. - disse, de olhos fitos na janela do quarto.
- Se conseguir?... Não desvalorize os meus talentos, menina. Olhe que já não sou nova, mas tenho experiência e conheço os homens muito bem. E as mulheres também. E se há algo que consigo ver aqui, são dois casmurros que não querem dar o braço a torcer: ele está arrependido e você ainda está agarrado a ele com unhas e dentes. E não há tentativa de suicídio que o contradiga. - disse a enfermeira, enquanto retirava os medicamentos.
Novamente o silêncio.
- Olhe, menina Flávia, esses silêncios podem resultar muito bem com os seus filhos ou com o seu marido, mas não se esqueça disto: como você, já eu criei quatro. Todas com muito pior génio do que o seu. Não me afecta minimamente que esteja em silêncio. Melhor é para mim, que oiço menos barulho ou asneiras. Bem bastam os do bloco C... - disse com desdém - Tome. Está na hora dos comprimidos. Até amanhã.
Saiu, com os olhos de Flávia postos na enfermeira...

À medida que os dias foram passando, Flávia foi começando a abrir-se com Marcia e lentamente foi-lhe contando como tudo aconteceu. Marcia revelou-se uma excelente ouvinte, com um coração imenso. A sensação que Flávia tinha quando falava com a enfermeira era que esta tinha todo o tempo do mundo para ouvi-la. De facto, começar a abrir-se foi mais fácil e rápido do que imaginara. Preguntara uma vez a Marcia porque é que ela era assim: ela respondeu que, desde que o marido morrera num acidente de trabalho, percebera que a vida era preciosa e que cada momento que passamos com as pessoas é único. Desde aí que tentava que as pessoas sentissem isso quando falava ou passava tempo com elas. Mas era difícil, as pessoas estavam demasiado centradas nelas próprias para perceberem isso.
Um dia, durante uma conversa, Marcia perguntou-lhe:
- Flávia, que sonhavas tu da tua vida?
Flávia olhou para a janela de novo, como era costume semrpe que um assunto lhe era particularmente difícil.
- Não sei. Acho que nunca pensei nisso. Para mim a vida era arranjar um emprego qualquer, casar, ter a minha família e vê-los crescer até sairem de casa, altura em que eu e o meu marido envelheceríamos juntos... e com estilo! - esboçou um sorriso.
- Já é alguma coisa! Mas será que isso chega?
- Chega? Para quê?
- Para saber para onde vais, filha. Pensa nisto: quando dizias que ias para casa, tu ias para casa ou ias para a tua rua, ou bairro?
Sorriram ambas.
- É obvio que ia para a minha casa. Eu sabia que ela estava lá. Não podia dormir na rua, seria estúpido.
- Precisamente! Também assim são as coisas na vida: ou tu sabes o endereço final, aquilo que queres fazer e para onde ir, ou então ficarás pelo caminho e tudo te saberá a pouco ou sem sentido mesmo, tal como não fazia sentido dormires na rua.
Flávia abanou a cabeça, compreendendo.
- Não te peço a resposta agora. Vai pensando, devagar, vai porfiando a retirar todo o pó que estes anos de inercia, de conformismo, lentamente depositaram sobre ti, sobre o teu querer...

- Sabes... agora que todas estas coisas estão mais ao longe, consegui perceber duas coisas: que não estamos sós e que muitas coisas há que acabam por ser melhores para nós. - disse Flávia, acabando de beber o sumo.
- Hmm... - disse Marcia, abanando a cabeça como que dizendo "pode ser que tenhas razão...", com boca cheia de sumo - Mas será que perceberias isso se não tivesses passado pelo que passaste?
- Mas também quanto é que é preciso para que uma pessoa perceba isso? Por exemplo, eu não ia percebendo... ia partir daqui, desta vida, sem chegar a perceber... quão grave que isso poderia ser?
- O que é que queres dizer?
- Quero dizer... como é que hei-de explicar?... estas coisas não tiveram só o efeito que agora vemos: a minha empresa de cosmética, os meus filhos de volta a casa, eu com mais tempo para eles, eu com mais tempo para mim, eu a apreciar cada segundo da vida, essas coisas... - piscou o olho a Marcia a rir-se - Mas tudo isso, olhando para a história toda, insinua que existe um algo muito maior, uma mão por detrás de tudo o que aconteceu que me levou de um estado letárgico a um estado atento, a olhar mais para mim e para os outros, pelo seu maior bem, por eles próprios, por Mim. Sei que a maioria das pessoas só fala de Deus em termos da igreja ou de uma perspectiva religiosa, mas para mim tudo o que aconteceu, foi Deus a mostrar-se e a sorrir para mim. Lentamente comecei a ver nas coisas que aconteciam, o Sentido Maior, que não é mais do que sermos felizes nesta vida, fazendo os outros felizes. No fundo, praticar o Bem...
- No fundo, sermos o rosto de Deus na Terra...
Riram-se as duas. Era um riso bom, um riso gostoso de rir, um riso que ecoava nas suas almas e que ganhava vida ao fazê-lo. As suas vidas mudaram enquanto o fizeram, inumeras vezes, umas entre as lágrimas que cairam de tempos a tempos, outras após as vitórias em que lhes apetecia gritar a todo o mundo o que tinham conseguido. Agora, naquele fim de tarde com o sol a pôr-se, frente ao mar, tudo fazia sentido. Recordaram historias boas e más, comuns e de cada uma, e brindaram, rindo-se novamente, a tudo quanto a vida lhes trouxe e que, um dia, a seu tempo, lhes iria trazer.

2 comentários:

Mag disse...

Muito boa esta história! Quero ler o resto!

Sílvia disse...

"sermos o rosto de Deus na Terra"...adorei a frase e sinto-a verdadeira. Tantas vezes estamos tão concentrados na nossa "vidinha" q nem nos damos conta do impacto real q a nossa vida tem nos outros e em nós mesmos.
Mais uma boa história...em q podíamos pensar q tudo estaria perdido vem uma força interior, vinda sabe-se lá de onde, q nos dá coragem para seguir em frente e aprender a viver no agora, olhando o futuro a sorrir e lembrando dos erros do passado p não os voltar a cometer...
Gostei mto da enfª Márcia, uma boa pessoa, toda a gente devia ter uma ...:)
Um dia feliz e q continue essa inspiração...