24 de julho de 2009


No soul is desolate as long as there is a human being
for whom it can feel trust and reverence.
George Eliot (1819 - 1880)

Numa sala de um qualquer velho bloco de apartamentos na cidade, Augusto junta papeis de jornais abandonados na rua, velhas reliquias usadas como sinais do tempo que, nas grandes cidades, passa sempre a correr. Depressa demais para que alguém possa, até, consciencializar-se do que se passa à sua volta. Ao mesmo tempo que o faz, num ritmo lento, ponderado, com método dir-se-ia até, vai observando os cabeçalhos de dias passados.
- Ena pá, olha-me para este tipo, como ele está!... coitado, brevemente vai p'ra quinta dos calados... - disse, falando para si mesmo, numa voz rouca, no que poderia ser mesmo um bom baixo lírico numa companhia de ópera. - E este também nunca muda. Ou antes, muda até demais: cada semana que passa, é outra gaja que ele consegue engatar...
No mesmo ritmo compassado, dobra com cuidado o jornal e arruma-o com paciência no monte que já tem do seu lado esquerdo. Pega entretanto noutro e procede à mesma análise de factos e figuras.
- Tshh, estes jogadores da bola são sempre o mesmo... é só jogatana, copos e gajas... trabalhar a sério é que era bom! Onde é que já se viu, andar a dar pontapés atrás de uma bola ser um trabalho, um emprego? Onde é que está a utilidade desse mester? Sinceramente... E este aqui?, parece quem o rei na barriga, ó caraças, só porque tem jeitinho de pés... se estivessem na guerra, no meio do mato, queria ver o que é que faziam com o jeitinho de pés...
Após alguns minutos, pousou também o exemplar do jornal desportivo, colocando-o no monte. E assim prosseguiu durante mais umas horas, até o sol ter descido abaixo da linha de prédios que se via pela janela do andar que ocupava ilegalmente. Era um andar abandonado, já há muitos anos, localizado no que tinha sido, noutros tempos, a zona áurea da cidade - uma zona com um enorme parque, onde jovens brincavam, casais de classe média passeavam nos seus tempos de lazer de chapeu alto e sombrinha e idosos recordavam com saudade os seus tempos de mocidade ida. Na memória de Augusto, que ainda tinha presenciado uma parte deste quadro, lembrava-se que nessa altura não se via aquilo que se vê hoje por tanto lado: idosos abandonados em casa, ou nos jardins sempre com a mesma rotina, em companhia de outros idosos. "Os novos não querem nada com a velhice... no meu tempo não era assim... naqueles bancos de jardim, o pessoal de idade era respeitado. Todos olhavam para eles com reverência e tinham uma palavra, um segundo para dois dedos de conversa para com quem aí estivesse sentado. E eu achava isso bem! Quem havia naquela rua que contasse melhor histórias que o sr. Francisco, ou melhores anedotas que o sr. Antunes, sempre com um sorriso nos lábios debaixo daquele bigode farfalhudo que tinha? Ninguém! Eles tinham o tempo para nós, que eramos miúdos na altura, que os nossos pais não tinham em casa, sabiam coisas do arco-da-velha e nós ficávamos espantados a ouvir... eles sabiam prender-nos, sabiam deixar-nos suspensos no final de cada palavra, era tão bom...".
Augusto tinha ajudado a construir aquele prédio: eis a razão para que, assim que se viu na triste situação em que se encontrava e, ter visto que o prédio estava devoluto, ter escolhido ocupá-lo, como quem nao quer a coisa. "Sempre é melhor que dormir na rua, num vão de porta ou de escada qualquer ou à porta do Metro, como os outros desgraçados!" Era um sem-abrigo muito "fino". Assim que ocupou um dos apartamentos, conseguiu arranjar uma fechadura nova, pelo que o apartamento era só, tecnicamente, dele. Infelizmente, não era fácil arranjar o resto do equipamento mínimo de um lar, pelo que ia ter as suas refeições ao Centro Social mais próximo, tomava banho de água fria ("ao menos tenho água!") e dormia numa cama de jornais abandonados, com outros jornais por cima. É preciso dizer que Augusto não tinha frio durante a noite: o papel de jornal é um excelente isolante térmico e a divisão onde dormia tinha uma janela ainda intacta, pelo que o frio não entrava com tanta facilidade. Todas as noites pensava "Já me prometeram um saco-cama lá no Centro mas... e saco? Nem vê-lo!... se fosse a confiar naquela gente e não apanhasse os meus jornaizinhos, bem me podia sentar à espera!". Augusto era um desconfiado. A vida tinha-o tornado assim e, aos seus olhos, era um sistema que não falhava: dessa forma não tinha surpresas (coisa que odiava) e não tinha que prestar contas a ninguém sobre a sua vida.

- Atenção à grua, pá! - gritou Augusto, de olho no resto do seu pessoal - Raios partam estes 'maçaricos', nunca sabem fazer nada, ò caraças... - rabujou entre dentes.
- Tenha calma, sr. Augusto. O rapaz só está nisto há uma semana e os outros que estão a trabalhar na estação pouco mais tempo têm. Lembra-se como era quando começou?
- Tenho calma não, ó Pedro! Então propõem-se a fazer um trabalho para o qual não sabem? Que se fossem oferecer para condutores de autocarros, ou pasteleiros ou padeiros, ou sei lá!... Quem não sabe, não faz! Já viste o que é que seria deixar cair aquela palete de tijolos nos cornos de outras pessoas?? E depois quem é que era o responsável? Claro, o velho Augusto Ribeiro!! Ele é que escolheu o pessoal dele, ele é que é o empreiteiro!! No meu tempo não era nada assim! Antes de se começar a trabalhar a sério numa obra, o pessoal mais velho andava em cima de nós como uma carraça. Cada vez que fazíamos merda, pimba! uma arrochada na pinha que até andávamos de lado... mas aprendíamos e era com esses trabalhinhos miudinhos que aprendíamos... agora o pessoal mais experiente, onde é que está para isso?... Quer é fazer as horas, anda de um lado para o outro a olhar para o relógio de meia em meia hora, metidos com eles próprios e os mais novos que se fodam! Depois vêm com regras e leis e a Inspecção e o caraças... mais bom senso na cabeça era o que o mundo precisava, homem!...
Pedro abanou a cabeça a rir-se. O adjunto puxou Augusto pelo braço para lhe mostrar que a nova secção, a futura sala de passageiros, já tinha as paredes levantadas.
- Óptimo! Com esta equipa nova, estava a ver que iamos ficar ainda mais atrás do prazo... o tipo que nos sub-contratou já se anda a passar dos carretos.
- Não se preocupe, chefe. Eu ando em cima deles como uma carraça - disse, piscando o olho e sorrindo. - Venha, está quase na hora de almoço!
Afastaram-se daquele espaço e sairam para o estaleiro. Estavam a passar ao pé da zona onde dobravam o ferro quando, de repente, se ouviu um estalido e um grito vindo de cima:
- CUIDADO COM A CARGA A CAIR AÍ EM BAIXO!!! Ó PATRÃO, FUJA DAÍ!!!!
Mas já era tarde demais, a carga tinha-se desprendido do gancho da grua e a única corda de suporte acabara de estalar. A pilha de tijolos que estava a ser içada caiu com estrépito no chão, mesmo por cima da zona em que Augusto, Pedro e Duarte, que estava a dobrar vigas, se encontravam. No momento seguinte, o caos estava instalado no estaleiro e os três estavam inconscientes.
Dias mais tarde, Augusto acorda no hospital, enfaixado e engessado. Ao seu lado, a mulher e alguns colegas de trabalho.
- ...Humpf... que aconteceu?... onde estou eu?... ai...
- Deixa-te estar quieto, Augusto Filipe - disse a mulher - tiveste um acidente na obra, não te lembras? Uma pilha de tijolos caiu em cima de ti, do Pedro e do Duarte...
- E como é que estão eles? Melhores que eu, de certeza... pessoal novo tem mais vidas que um gato! hehehe... ai! as minhas costelas...
- Pois, Augusto... - hesitou a mulher, olhando para o resto dos colegas que desviaram ligeiramente a cara - o Duarte está em coma e os médicos dizem que vai ficar tetraplégico... quanto ao Pedro... viemos agora do funeral dele.
Enquanto falava, a expressão de Augusto mudou. - O Pedro... morto?... como é possível?... Morto??... - As lágrimas começaram a rolar na sua cara...


Os anos foram passando e, após recuperar das mazelas que tinha sofrido, Augusto voltou a contratar uma nova equipa. No entanto, foi sol de pouca dura: no processo de averiguações que se seguiu ao acidente, concluiu-se que o estaleiro não cumpria certas normas mínimas de segurança, especialmente ao nível do equipamento de protecção individual, ou, como lhes chamavam, EPIs. Além disso, muito do restante equipamento utilizado na obra era obsoleto, não reunindo as condições de segurança exigidas. Era o caso da corda da palete que tinha caído. Pior que tudo isso, Augusto não tinha seguro. As indemnizações que os familiares reclamavam teriam que ser pagas do seu próprio bolso, já que determinou-se que, com o equipamento exigido por lei, Duarte não estaria tetraplégico e Pedro estaria, pelo menos, vivo. Foi a ruína de Augusto. Ao saber-se do resultado do processo, como se não bastasse a notícia do acidente, o número de pedidos de contrato caiu a pique e, pouco depois, o dinheiro já não entrava em caixa. Obrigado a vender todos os seus bens para pagar as dívidas, não lhe restou outra solução senão ir para a rua dormir, uma situação que a mulher não aceitou, pelo que pediu a separação.
- Eu sabia que o teu orgulho, a tua teimosia e a tua forretice um dia iam causar isto... não sou mulher de esconder a cara na rua com vergonha, não sou mulher de andar a pedir, nem sou mulher de mendigo. Não há volta a dar, lamento... adeus Augusto. - dissera-lhe antes de o deixar.
A partir desse dia, Augusto vagueou pelas ruas, de honra no chão, de cara escondida, tentando sobreviver. Pensava muitas vezes nos dias passados, nos dias felizes, de Sol, Verão, das viagens, de comida gostosa, cama e roupa lavada... lembrava-se, acima de tudo, do Amor que a mulher lhe dera, nos momentos que partilharam, nas promessas de Amor eterno que trocaram em jovens e nos seus votos de casamento... era disso que tinha saudade, no fundo, saudades de um tempo em que era Homem completo, ser amado e desejado, companheiro e amigo amantíssimo. Mas agora,sem amigos, sem mulher, sem casa, sem trabalho, sem honra, quem lhe valeria?... de que lhe serviriam as memórias, a sua experiência?... quem, e que, era ele, afinal?...

1 comentário:

Sílvia disse...

Olá! Não pude deixar de vir comentar...gostei bastante mas não é o meu preferido.

Obrigada por aguçares a minha latente necessidade de escrever...

Beijos