30 de julho de 2009

Advice is a dangerous gift, even from the wise to the wise.
J. R. R. Tolkien (1892 - 1973)

Ao vaguear pelas ruas, sem destino, continuava sem saber que fazer. A situação tinha-se tornado insustentável e os seus primeiros impulsos, se a eles tivesse obedecido, tê-lo-iam levado a cometer um erro terrível. Chovia copiosamente, mas a seu sentido de tacto tinha-se tornado absolutamente irrelevante quando absorto nos seus pensamentos. Olhava para as suas mãos e escrito por todas elas só via uma palavra: culpa, culpa, culpa... "Que fiz eu? Porque me deixei levar?... Tinha tudo para correr bem, mas devia ter dado mais importância àqueles imponderáveis que normalmente não se costuma dar atenção...".

"Hopelessly drifting, bathing in beautiful agony
I am endlessly falling, lost in this wonderful misery..."


Aclamado por todos quanto o conheciam, ele era o exemplo da pessoa prática: qualquer pessoa que lhe apresentasse uma questão, tudo o que exigisse planificação, era resolvida por ele de uma forma logicamente limpa e eficaz. Os projectos que assinava eram conhecidos pela sua limpeza estética, agradável ao olhar, sem perder qualquer evidência de funcionalidade. Casas, prédios, hoteis, centros de congressos, de artes e espectáculo, novas urbanizações, tudo o que saía do seu estirador levava a sua marca, cuja popularidade aumentava de projecto para projecto. Dele se dizia que era inspirado por uma força inexplicável, que lhe conferia clareza de ideias e uma visão de um estilo que poderia muito bem vir a ultrapassar épocas.
Sentia-se bem sendo quem era, acordava satisfeito com a profissão que tinha acabado por enveredar... Aliava as suas três maiores paixões: a matemática, a física e o desenho. Lembrava-se muitas vezes da altura em que tinha de escolher a licenciatura a tirar: tinha oscilado entre Matemática Aplicada, Engenharia Mecânica e até mesmo Belas Artes. Conversando com amigos seus e aconselhando-se com outras pessoas dessas e outras áreas, acabou por se decidir por Arquitectura, numa solução de compromisso entre as suas aptidões. E foi mesmo a melhor solução: ao longo dos anos na Universidade sentiu-se como um peixe na água, recebendo os mais variados louvores de professores. No final, a recompensa e o reconhecimento: um convite para o mais prestigiado estúdio de Arquitectura do país. - És um jovem e raro talento - disseram-lhe ao anunciar a decisão, - e se continuares a trabalhar como trabalhaste ao longo da tua licenciatura, certamente o teu nome figurará entre o dos grandes da arquitectura deste país. E assim foi. Em complemento com a sua actividade, decidiu tirar uma pós-graduação em arquitectura paisagista, por achar que nenhum edifício poderia estar completo sem se integrar correctamente no meio envolvente. Rapidamente, os pedidos para a planificação de urbanizações e remodelações urbanas surgiram. Não tinha mãos a medir e cedo teve de pedir ao chefe do estúdio autorização para ter a sua equipa de colaboradores. Após alguma resistência inicial, visto ser uma situação inédita (e um pouco arriscada), foi-lhe concedida autorização e a sua equipa foi criada, expandindo-se passado um par de anos.
- Estás a ficar muito grande para este estúdio, sabias? - disse-lhe o chefe - Só tu és responsável por 60% dos pedidos de projecto, és a nossa "galinha dos ovos de ouro"! HAHAHA!!
- Não tinha noção do meu peso aqui dentro, chefe!... eu só reparo na quantidade de trabalho que tenho, pouco tempo tenho para pensar noutras questões. O dinheiro que recebo chega e sobra para as minhas necessidades e prazeres pessoais, sinto-me bem nesta casa, tenho todas as condições, não tenho nada a reclamar.
- Pois... e ainda bem! Por isso mesmo é que tenho uma proposta a fazer-te. Eu, em conjunto com os outros sócios do estúdio, estivemos a conversar e, dado o teu peso no fluxo de trabalho aqui da casa, decidimos oferecer-te uma posição de sócio. Que dizes? - perguntou, com uma amistosa palmada nas costas.
- Eu... não sei que dizer... sou tão novo... Sócio?... Já?... Então e outros que já cá estavam?...
- Meu caro, desde o primeiro dia que te disse que este escritório é um pouco a imagem oposta ao que se passa neste país: aqui o mérito é recompensado. Se eles ambicionavam por esta posição, que trabalhassem mais, que se aplicassem, que se dedicassem mais. Não digo que sejam maus empregados e que sejam "baldas" mas o facto é que tu foste uma valiosa adição para o estúdio e isso não pode passar em branco: uma mais-valia preciosa como tu és, tem de pertencer aos quadros directivos da casa, tem que ter uma palavra, uma voz activa no rumo que a empresa tem de seguir. Estou a dar-te uma oportunidade que poucos, muito poucos nesta casa, e todos quantos por cá passaram, tiveram.
- Chefe... preciso de pensar um pouco... o trabalho é tanto... e sei que ser sócio do estúdio não é só estatuto: há muito trabalho implícito, para além do normal.
- Mas isso não é problema, quando te concedemos a tua equipa pessoal, já estavamos a contemplar esta situação. Com essa concessão, quisemos ver também a tua capacidade de coordenação de uma equipa, a tua capacidade de liderança e os resultados estão à vista: o número de projectos pedidos especificamente para seres tu a fazê-los duplicou em 3 anos.
- O meu único problema, Chefe, é que eu não me quero separar do estirador. Desenhar, projectar é para mim um estilo de vida, uma paixão, uma verdadeira profissão: é o que eu sou.
- Hmmm, estou a ver... bem, os sócios não são obrigados a tornarem-se ou serem gestores da empresa. A questão é que, normalmente, quando nos oferecem a posição, já não somos novos... pleo menos não tão novos quanto tu, de forma que estamos um bocado cansados do estirador e, ao vermos as novas gerações a chegar, as novas ideias a fluirem e a aparecer por todo o lado, aliado ao cansaço, é uma oportunidade irrecusável para mudar de vida. Compreendo o teu ponto de vista, e posso-te dizer que a tua única obrigação será participares na reunião semanal dos sócios e, obviamente, em todas as reuniões extraordinárias que possam vir a tomar lugar. Fora isso, creio que não terás mais nenhum cargo acrescido, os restantes sócios encarregar-se-ão do resto, não te preocupes... concordo que seria cruel afastar o teu génio do estirador. Em que é que ficamos então?
- Chefe, nessas condições, é óbvio que aceito! - exclamou, estendendo a mão.
- Óptimo, rapaz! E podes parar de me chamar chefe, agora somos sócios, lembras-te?...
- Selaram o acordo, apertando a mão com energia e sairam do gabinete em direcção à rua.

Tudo lhe parecia, assim, correr bem. Estava no caminho para o auge de uma carreira extraórdinária. Passado pouco tempo, o gabinete foi galardoado com o maior prémio de arquitectura do país, sendo seguido por outros. Individualmente, o reconhecimento nacional também lhe tinha chegado e, pouco tempo depois, foi altura do primeiro galardão internacional. A tudo isto, ele agradecia com humildade, reconhecimento e mais trabalho. Ao longo do tempo, nunca parara de estudar, de se inteirar das novas tendências, dos novos desenvolvimentos da arquitectura, das técnicas de construção, da investigação dos efeitos sociais recorrentes da organização do espaço urbano ou da própria casa. - Actualização e trabalho, são as palavras chave neste grupo! - exclamara ele durante uma entrevista concedida à televisão.

Naturalmente, o ritmo de trabalho acentuado, e cada vez mais exigente, acabaram por ter a sua contrapartida: o cansaço acumulou-se e o seu corpo, após muitos anos, pedia descanso sério. Referindo isso aos seus sócios, obteve dele uma resposta positiva e satisfatoria, pelo que decidiu tirar uns dias de férias em sua casa, com passagem por um ou outro país. Num desses dias, bateu-lhe à porta um dos sócios, numa pequena visita:
- Então, como estás?
- Bem, estou bastante melhor! Muitos anos sem descansar, não matam mas moem!
- Sim, de facto, estás com melhor cara! Já devias ter pensado nisto antes...
- Sim, sim, bem sei mas, sabes, gosto tanto do trabalho... é quase algo compulsivo! E depois as ideias fluem em catadupa, tenho sempre tanta vontade de pôr tudo o que me vem à cabeça no papel.
- Bem, como sócio da empresa nao me posso queixar... mas não foi só por isto que aqui vim... O Lionel nunca te tinha referido isto porque é um evento raro, mas nós, os sócios, temos uma pequena tradição só nossa: de anos a anos, dirigimo-nos a um restaurante altamente reservado e passamos uma noite de farra. Os problemas do escritório ficam no escritório: o objectivo é entrosarmo-nos, criar um bloco coeso, ter algo que nos una para além das respinsabilidades directivas. O que é que achas disto?
- Não desgosto da ideia, até porque já estou de férias. Mas estão a pensar fazer isso quando?
- Esquece o facto de estares de férias porque é algo que vai muito além de um convivio num 'resort' de luxo... os sítios onde costumamos ir são altamente reservados e o Lionel tem contactos muito bons, que lhe abrem muitas portas... são sítios com portas que não se abrem, normalmente, mesmo a pessoas com um estatuto social bom. Não imaginas o luxo, não imaginas, de todo...
- Estás a aguçar a minha curiosidade de uma maneira que tenho a tentação terrível de te dizer já que sim!... No entanto, não sei se gosto muito essa historia dos 'contactos' do Lionel... parece tudo muito... underground...
Cláudio olhou para o tecto e disse: - De facto, é tudo um bocado sigiloso, mas posso-te assegurar que não tens nada a temer. A única coisa com que tens de te preocupar é em divertires-te e relaxar, não tens que tratar de nada... Ah! e namoradas, esposas e/ou amantes ficam à porta... é uma espécie de saída de gajos...
- Muito bem, creio que a Esperança vai compreender... e afinal quando é que é esse 'dia'?
- Estamos a pensar já para o próximo fim-de-semana. Vamos na Sexta à tarde, passamos lá o Sábado e no Domingo de manhã regressamos. Podes dizer à Esperança que ainda passas com ela o Domingo! - exclamou, rindo maliciosamente.
- Sendo assim, se não há riscos nenhuns, se é pura diversão, aceito. Não quero ser a 'ovelha ronhosa' da família!
- Óptimo, eu sabia que não ias dizer que não! Eu depois vou dizer ao Lionel a tua resposta e, como é ele que trata das coisas, hás-de receber por e-mail as direcções e o que tens a fazer... normalmente é assim que a coisa funciona.
- Lá está outra vez essa atmosfera de 'sociedade secreta' que me arrepia... mas pronto, se é esse o preço a pagar para um fim-de-semana de arromba, que seja!
- Então, vemo-nos no 'encontro'! Resto de boas férias!
- Obrigado pelo convite e pela visita! Eu acompanho-te à porta...


Como combinado, dias mais tarde ele recebeu de Lionel as orientações para o 'encontro'. Ficava numa zona muito remota do país, onde nunca imaginara que existisse uma estância de luxo. Iriam deixar os carros numa estação de comboios da região e seguiriam em transporte particular do 'resort' para o mesmo. Para além da roupa casual e do fato de banho, pedia-se também que trouxessem uma fantasia, subordinada ao tema "Grandes Conquistadores". "Estranho!... Ele não me tinha falado em nenhum baile de máscaras...". Mas se eram essas as condições, assim seria. Aproveitou o tempo de férias para ir à procura de uma fantasia de Mehmet II da Turquia... o mais dificil foi arranjar uma Cimitarra, mas falando com as pessoas certas lá conseguiu.
Encontraram-se todos nessa tarde de sexta-feira, com grande euforia. Nem Lionel (o chefe), nem Álvaro, nem Cláudio pareciam as mesmas pessoas de todos os dias, pareciam crianças à porta de uma loja de doces.
- É pá e lembras-te há 6 anos daquele jantar que fizemos no outro lado?
- Se lembro! Apanhaste uma 'cadela' de tamanho tal que ficaste a dormir em cima da mesa e só acordaste no dia a seguir com um dos empregados a perguntar "o seu pequeno almoço vai ser servido aqui ou no duche, senhor?" tamanho era o vomitado á tua volta!HAHAHAHAHAH!!!
- Bem, essa parte não me lembro, só me lembro da noite e da ressaca que fiquei durante esse dia a seguir... então e lembras-te das 'peque... - perguntou, meio sussurante.
- Sshhhhh! Tem calma Álvaro... Não podemos desvendar tudo o que se passa ao nosso 'maçarico' nestas andanças... ele que veja pelos seus próprios olhos e depois conversamos sobre os outros anos.
- Tens razão. Olha, a carrinha está a chegar! Vamos lá...
A estância era, definitivamente, um oásis no meio da desolação da zona. Equipada com o que de melhor havia, tinham tudo à disposição e quem tinha desenhado aquilo, tinha conseguido enquadrar o 'resort' sem destoar da paisagem circundante: era uma estratégia estética e de discrição, os hóspedes deveriam estar como se estivessem em suas casas. Foram recebidos por umas jovens com um trajo bastante apelativo, que os guiaram aos seus aposentos, anunciando, antes de sair dos quartos, que o jantar iria ser servido daí a meia hora.
Durante o jantar, foram-lhes servidas iguarias sem paralelo ao que já tinham provado. Desde o 'crocodilo salteado com molho de framboesas da Amazónia e arroz Italo-Chinês', passando pelo mais rústico 'Javali no forno com batatinhas salteadas e molho chimichurri' até ao exótico 'Suea Rong Hai' do nordeste tailandês. Depois dos digestivos - da melhor qualidade -, cansados da viagem, decidiram retirar-se para uma revigorante noite de sono.

No dia seguinte, o pequeno almoço que lhes foi apresentado era digno de uma reunião de todas as famílias reais europeias. Ele nem queria acreditar no que os seus olhos viam, tal era a variedade de frutas, pratos e bebidas à disposição. "Isto faz-me ter pena de quem passa fome no mundo...", pensou. Depois de tamanho pequeno almoço, nada melhor que uma caminhada para digerir. Saiu para os montes em redor para um passeio de hora e meia, findo o qual decidiu jogar uma partida de ténis com os restantes sócios. O restante dia, foi passado de forma semelhante. Perto da hora do jantar, foi-lhes transmitido que vestissem as suas fantasias e se apresentassem no salão Noir do complexo B.

(a suivre prochainement...)

1 comentário:

Sílvia disse...

Uma história por episódios...faz mesmo lembrar os contos q íamos ouvindo por capítulos na infância, deixando nos em suspenso c o q viria a seguir...estou curiosa c o q aconteceu q mereceu tamanho sentimento de culpa...
Gostei mto do 1º paragrafo...

Beijos
Sílvia