The truth does not change according to our ability to stomach it.
Flannery O'Connor (1925 - 1964)
"Não olhes assim para mim... por favor, pára de olhar assim para mim..."... Era tudo menos aquilo que precisava: o dia tinha sido tão agradável, o plano de pegar num livro e ir para o jardim perto de sua casa tinha sido perfeito... Sentia necessidade de sair de casa, de arejar, depois de tudo o que acontecera. E, apesar de tudo, tinha receio de enfrentar a luz do Sol. Mas a vontade de liberdade era mais forte: respirou fundo, e avançou em direcção à porta de entrada. "Com certeza que foi um episódio esporádico, estas coisas estão sempre a acontecer... não vai voltar a acontecer...". Atravessou a rua e dirigiu-se à lojinha do sr. Joaquim.
- Boa tarde, sr. Joaquim!
- Boa tarde menina! Bons olhos a vejam! Há tanto tempo! Então como tem ido?
- ...Tem-se ido bem! - respondeu com um meio sorriso - Queria levar isto, s.f.f.
- Ora é uma garrafinha de água para a menina, com certeza. Sabe quem é que tem perguntado muito por si? A d. Vitória, a sua vizinha de cima. Ela tem dito que não tem ouvido nada, ultimamente, que dantes havia sempre música alta, era uma animação no predio... coitadita, ela enviuvou tão cedo e gosta tanto da música que você costuma ouvir...
- Pois é sr. Joaquim, mas ultimamente tenho andado ocupada com uns assuntos que me obrigam a concentrar e ter mais silêncio... quando esta fase passar a musica há-de voltar, de certeza. Quanto é?
- 1 euro e 30, s.f.f.
- Aqui está. Obrigado e até qualquer dia!, disse já a sair.
- Obrigado e volte sempre menina!
Era impressionante como a rua que atravessava agora lhe parecia completamente diferente. É impressionante como a realidade avassaladora do momento que viveu mudou a sua perspectiva das coisas, mesmo dos locais mais comuns e banais, onde sempre vivera e passara... Ou, então, era talvez a renovada atenção com que passou a olhar para essas mesmas coisas. No fundo, tudo agora era novo; era como se tivesse renascido... oriunda de um parto absurdo da vida, quem sabe...
O Jardim projectava-se à sua frente. Com um dia tão fantástico pela frente, era, de facto, um crime não sair naquele dia. A ideia não era peregrina: parecia que todo o bicho-homem tinha saído para apanhar os primeiros raios de sol do ano, com uma temperatura que fazia lembrar vagamente dias mais quentes... a magia, se calhar, era essa: para alem de se sentir o 'degelo', lembrava os dias de férias, dias que não têm tempo nem hora, dias infindos de risos, de sabores e de sensações. Agora, ali, estava a oportunidade de iniciar o seu 'degelo' pessoal: o Jardim tinha sido desenvolvido havia alguns meses e inaugurado alguns dias antes, uma inauguração algo 'emsombrada' pelo tempo chuvoso que se tinha feito sentir. De traço moderno, com largos espaços relvados, amplas zonas arborizadas, socalcos e pequenos espelhos de água era um belo espaço numa zona da cidade que, havia não muito tempo, estava completamente ao abandono, um autêntico baldio onde cães abandonados, de dia, e grupos de toxicodependentes, de noite, se juntavam. Com o tempo ainda se tornaria melhor.
"Foi quase um milagre o que aqui aconteceu. Espantoso o que o espírito e a vontade Humana conseguem fazer... quando existem!", pensou enquanto procurava um espaço onde se pudesse encostar a ler à sombra, na relva. Mais do que isso, olhava com alguma inquietação em seu redor, como se buscasse um inimigo invisível. Em cada sombra, em cada recanto, pensava ver a ominosa figura que a assombrava havia algumas semanas.
"Aqui parece-me bem!". O sítio era amplo, tinha imensas pessoas a passar, a uns 15 metros as crianças brincavam e, alívio, era uma zona patrulhada pela Polícia. "Sim, parece-me muito bem!". Não sentia a segurança de casa mas estava lá perto. Casa. Essa palavra adquirira um sentido estranho depois de tudo quanto acontecera...
Semanas antes, a sua vida era, dentro da normalidade, perfeita. Tinha trabalho como chefe de operações logísticas de uma firma bem estabelecida no país e a sua vida amorosa parecia ir de vento em popa, com a perspectiva de começar uma vida em comum com o seu namorado de há 5 anos. Numa noite, ficara a fazer horas extra para resolver um problema de distribuição de um dos fornecedores que estava em falha. Exausta, desligou tudo e dirigiu-se a casa, ansiando por aquele banho quente, revigorante, com aqueles sais de banho maravilhosos que o seu namorado lhe tinha comprado. Mal conseguia aguentar essa perspectiva imediata do mergulhar na banheira, ao som de Garbarek... felizmente não havia muito trânsito e pôde chegar a casa rapidamente. Procurou lugar o mais perto possível da porta de casa mas não conseguiu. "Esta gente agora tem um carro para o pai, um para a mãe, um para cada um dos filhos e um jipe para o cão! Que raiva!", pensou, murmurando em simultâneo. Acabou por estacionar a um quarteirão de distância. O banho estava quase a concretizar-se, mais 5 minutos a pé e estaria a ensopar! Saiu do carro e caminhou o mais rapidamente que os saltos lhe permitiam. Inexplicavelmente, uma estranha sensação de estar a ser seguida apoderou-se de si e começou a olhar em seu redor. "Agora, ao final de viveres aqui 7 anos é que estás a ficar paranoica? Esquece isso...". Dobrou uma esquina, depois outra e ja tinha a sua rua à vista. "Almost there!..."
- Boa noite Beleza! - falou uma voz vinda das sombras da noite - Estás perdida?
Ela continuou em silencio o seu caminho, abrandando primeiro o passo e depois acelerando quase ao ponto de correr.
- Eh, ouve lá pá! Estou a falar contigo, não me ouviste?? Julgas que és quem, p'ra me dar desprezo?!?
Dizendo isto, agarrou-a firmemente pelo braço e puxou-a para si. Ela debateu-se, respirando um hálito fétido, com laivos de um cigarro recentemente fumado.
- Largue-me!!! Quem é você para me agarrar assim?? Largue-me já disse!!! Eu vou gritar!! SOCOR....
- Cala-te puta!!! - e deu-lhe um estalo que a fez perder os sentidos.
- Hmmmm... - acordou estremunhada. "Onde estou?... Que ac... Ai!!! Que dor de cabeça!...".
Tentou mexer-se mas, ao primeiro movimento, todo o seu corpo gritou de dor. Tentando novamente mexer-se, conseguiu apoiar as mãos no chão da viela escura onde se encontrava e ergueu o tronco. À medida que os sentidos tornavam, sentiu uma onda de dor incrível na sua zona genital. "Não, não pode ser...". À luz longínqua da iluminação da cidade, tentou ver o estado em que estava, mas as lagrimas que já corriam toldaram-lhe a vista. Com a mão, tacteou então o seu corpo por debaixo da saia que trazia vestida, agora rasgada. A horrenda conclusão, ou confirmação do que suspeitava, chegou à velocidade da luz. As lagrimas agora não escorriam, jorravam dos seus olhos em catadupa. Mergulhada num pranto silencioso que se prolongou por longos minutos, ali ficou sentada. Ao fim de longo tempo levantou-se, com muito esforço, e arrastou-se até casa. Pelo caminho encontrou a sua mala e, na medida do possível, procurou o que restava do conteúdo da mesma - só lhe levara o telemóvel e o dinheiro.
"Levou-me muito mais do que isso, nessa noite. O telemóvel e o dinheiro não são nada, comparado com o que ele me levou." As memórias que lhe sobrevinham à cabeça, já não eram tão frequentes como na primeira semana. Mesmo assim, cada vez que relaxava ou fechava os olhos, a mesma imagem do violador, a face mal iluminada, aquele hálito putrido, o acordar depois da violação, tudo lhe vinha à cabeça numa imagem única, potenciada pelo maior desgosto, indignação, ódio que jamais havia sentido. No decurso das semanas subsequentes fechara-se em casa, tornou-se amarga e intratável, intocável, ao ponto do namorado se ter afastado, e estava à beira de perder a sua posição na empresa após inúmeros pedidos de adiamento de regresso ao trabalho, dos quais a administração já se estava a cansar.
Voltou a olhar para o livro e tentou concentrar-se. Tinha escolhido um bom livro e isso ajudava-a a distrair-se. Eis quando não, reparou num homem, encostado a um banco que fumava. Não tinha mau aspecto mas o seu olhar transparecia atracção física, desejo carnal, misturado com um horrivel ar confiante de "engatatão das sete dúzias".
"Não olhes assim para mim... por favor, pára de olhar assim para mim... Outra vez não, não, NÃO!!!!". Levantou-se apressadamente, arrastando o saco e tentando arrumar o livro no saco... enquanto fugia, uma nausea percorreu o seu corpo e sentiu-se à beira do vómito. Chegada a casa, trancou a porta a sete chaves e escondeu-se na divisão mais afastada, sentando-se num canto, em posição fetal...
- Meu Deus, até quando?... Quando é que isto vai parar??... Que foi que eu fiz para merecer isto?... Que Vida é a minha?... - disse entre soluços de um choro desvanecente... - Como é que eu posso esquecer isto, como é que eu posso viver com isto?... - lembrando-se de uma linha final de uma música que conhecia: "The truth is the truth: all you can do is live with it..."
1 comentário:
Estou deveras impressionada...
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