23 de julho de 2009


Words are a heavy thing...they weigh you down. If birds talked, they couldn't fly.
Sy Rosen and Christian Williams, 1992

Branco. Branco ofuscante, penetrante, puro. Uma imensidão alva rodeia-me, sem princípio nem fim. É um campo de algodão que se estende, até ao infinito, sob um fino céu azul profundo, como uma abóbada pintada pelos mais talentosos artistas do Universo, com uma perfeição inigualável. Dá vontade de caminhar sobre esse campo, ir aos saltinhos, saboreando sob os pés a suave textura de tão macio campo, num prazer infindo. Que nunca se quer que acabe. Que nunca tenha parança. Que seja sempre mais e mais. Que haja sempre mais e mais. Aquele algodão... este algodão... ele simplesmente é! Alguém lhe disse o que ele é? Alguém lhe disse o quão branco ele é? O macio que é? O atractivo que é? Não. Ele simplesmente é. Está aqui, aos meus pés e simplesmente é. Os átomos que o constituem podiam ter sido outra coisa completamente diferente, mais abrasiva, mais densa, mais escura, mais repelente. Mas escolheram ser água, vapor, névoa, nuvem. E simplesmente são.

Sento-me.

Estou cansado. Há muitos dias que caminho, sem estrada, sem trilho, mas com destino. Hei-de lá chegar, tenho de lá chegar. O frio. Este frio que está por todo o lado e que nos penetra, por muitos fatos termicos que usemos, por muitos cachecois que tenhamos, por muitos polares que vistamos e calcemos. É um frio hostil, com vida própria, com passos inaudíveis mas uma voz que grita com as voltas que o vento dá por entre nós. Parece quase uma maldição, uma praga que nos assola e nos tolhe os membros, o corpo todo, que torna lento o pensamento, o corpo... não a alma. Não. Quente. Fogo. A alma arde e leva-nos a prosseguir, a continuar sempre em direcção ao destino que tenho, que todos temos. Ela brilha acima de qualquer luz, é a Força Maior, é a Essencia Invisível, intocável, sensível, irresistível... Porque não brilhas tu agora com todo o teu calor, para que me pudesses aquecer? Agora, na maior de maior necessidade??

Silêncio.

Porque fiz eu esta viagem?... Ainda falta tanto tempo, tanto caminho a percorrer... Está tão longe o destino... Não, não está nada! Está já ali, acredito que está mais perto do que o que penso que está. Os olhos enganam. Sempre enganaram. Sempre me deixei levar pelo que os olhos e os ouvidos me "contaram" e nunca fui parar ao sítio onde desejava, salvo algumas honrosas excepções. Eles limitam a minha realidade, retiram-me o foco do "agora" para o "antes e o depois", para o que já foi e a hipótese de algum dia ser, entre o consumado e o imaterial intangível. Há momentos em que é preciso saber o que se é, é preciso saber-se para onde vai. Este é um deles. Este é um deles?... Que sei eu?... Num dia somos os senhores de todo o conhecimento, noutro dia somos os mais ignorantes seres do mundo, alternando indefinidamente entre o alto e o baixo, entre a glória e a desgraça, entre a confiança inabalável e a dúvida mais tenebrosa. Um barco à deriva no meio de um mar agitado, sem leme, sem velas. Teremos mesmo um destino?... Sim, é claro que sim, claro que temos, não penses em disparates, tu sabes que tens um destino. Não é por acaso que estás sentado onde estás, vestido como estás, prestes a fazer o que vais e tens que fazer. Mas... tudo isto para quê? Qual a razão do teu esforço, do teu sangue, suor e lágrimas, das noites infindas sem dormir como deve ser, do frio que te congela até à alma?... das tuas dúvidas?...

- Estás louco!
- Dificilmente. Sei o quero. - disse calmamente - Mais do que nunca sei o que quero, sei do que preciso. Preciso de partir. Aquela montanha chama-me. É inútil negá-lo. É uma realidade tão certa como eu e tu estarmos aqui, um em frente ao outro.
- Sim, respeito e estou a atentar aceitar, mas... porquê? Porquê agora? Porquê de repente? Porque é que não reflectes melhor, não ponderas se é mesmo isso que queres fazer?
- Está na hora. Soou dentro de mim. Senti em mim a corda solta das amarras, sinto-me livre, solto de todos os encargos que tenho... sinto que é hora de ir e encontrar... - disse de olhar no vazio.
- Solto? Livre de encargos? Sem amarras?... - abanou a cabeça, num misto de espanto e piedade - Estás mesmo louco!!... Então e os miúdos? Então e eu? O teu trabalho? Os teus amigos? A vida que estabeleceste aqui, ligado a uma família, a uma comunidade, o teu compromisso para com a sociedade? Que é feito de tudo isso?? Que vai ser de tudo isso???
- Tudo isso pode prosseguir sem mim. A vida continua, por muito que uma pessoa falte. Isto não é um sistema fechado, dependente de cada uma das unidades que perfaz o todo. A vida continua... É uma realidade difícil de aceitar para a maioria das pessoas, sabes? As pessoas vivem tão embrenhadas no sue dia a dia, que não concebem a vida sem ser de outra forma, sem determinadas pessoas que conhecem, sem ir a determinados sítios, sem ter determinadas coisas, enfim, sem a sua vida rotineira. Não vale a pena culpá-los: o Homem é muito um animal de hábitos, mais ainda quando se acomoda a uma situação que considera ser a melhor possível; como diria Voltaire, no seu Cândido, "quando se vive no melhor dos mundos possíveis!". Mas há dias em que se acorda deste optimismo entorpecente e vemos, não só, que o mundo em que vivemos pode continuar sem nós mesmos, como também que o nosso lugar nem sequer é ali. E, então, a vontade de partir instala-se, anicha-se, alimenta-se do fogo da nossa alma e cresce, cresce, cresce cada vez mais até ser tão impossível de negar, de conter no nosso peito e na nossa mente que, ou mudamos, ou rebentamos! PUM!!!... e adivinha por que lado é que o ser Humano opta, normalmente? É inevitável: decide partir, muitas, tantas vezes sem saber para onde vai, ou por onde passar. Simplesmente, vai. Porque percebe que não há maior nirvana do que, simplesmente, ser.
- As coisas não são assim, não podem ser. Tudo aquilo que disseste não passa de devaneios, pensamentos soltos, idílicos, poéticos de alguém que sente que há qualquer coisa na sua vida que não está bem e que quer mudar... - aproximou-se dele, quase em desespero - O que é, querido? Diz-me!! Conta-me o que é que te aflige? É o trabalho? É o teu patrão? Os colegas?... É a rotina de todos os dias? Que queres tu mudar? diz-me!!... Sou eu, não é? Vejo nos teus olhos que sou eu? O sexo já não é o que era, é o que tu pensas, não é Querido? Já não sou bonita? Desiludi-te como pessoa, à medida que os anos passavam, não foi? Fala comigo Amor, não desvies o teu olhar, fala comigo!!!
- Basta!! Já te disse o que quero! Já tomei a decisão!! É irreversível!! É algo que tenho de fazer por mim, ouviste?, por mim!!! E não há nada, NADA, que me demova desta ideia... é uma coisa que grita em mim, que me queima e me faz passar noites em branco, mais pela impaciência do nunca mais partir do que pela agonia do que deixo para trás!! Tenho que ir!!!
Virando costas, saiu de casa.


Luz quase encadeante.

Impetuoso. Meteste esta ideia na cabeça e não descansaste enquanto não te meteste no avião até este país perdido nos confins do mundo, com os poucos "trocos" que amealhaste ao longo de uns meses, não puseste a mochila às costas e puseste "os calcantes" nesta maldita cordilheira. Era isto que precisavas de fazer para o perceber?, para perceberes que és impetuoso, teimoso e egoista??... Ahh, agora pensas na tua família!... Bem, mas agora é tarde: só tens um caminho a percorrer e esse é para cima. Não tens hipótese de espécie alguma. E depois de lá teres chegado, que farás? Depois de teres apanhado o avião de volta, que farás? Julgas que o teu magnífico emprego estará à tua espera? E a tua mulher, depois daquela despedida "em beleza" que fizeste, julgas que está disposta a aceitar-te como dantes? Não percebes, pobre imbecil, que mudaste a tua vida de uma forma completamente irreversível e irrecuperável?? Não percebes??? Afinal que és tu???

Ar... preciso de ar... preciso de pôr as ideias em ordem...

Afinal quem sou eu? No meio desta neve, deste tapete incerto, escondendo sabe-se lá que perigos, confiando em pessoas que nunca vi na vida, que nem a fortuna que lhes paguei me garante a sua honestidade e competência, vestido como se tivesse feito isto toda a minha vida, quem, ou que sou eu? No fundo, que sou eu? A neve é branca, fria, feita de água, instável, frágil, dificulta-nos o caminhar e parece nunca se acabar por aqui; as nuvens são brancas e feitas de água também, translúcidas à luz do sol, húmidas, intocáveis ou fantasmagóricas, melhor dizendo; a rocha é dura, preta, cristalizada, imutável aos nossos olhos. Tudo tem a sua natureza, e umas coisas tem a sua essência mais à vista do que outras. Não, isto ainda não me responde à minha pergunta: quem sou eu? Mas, será que tenho de responder a esta pergunta?

Vento... vento que nunca mais acaba... e o cansaço... também...

Saudades. Sinto saudades. Sinto saudades não sei de quê, ou de quem, mas sinto-as como ainda sinto o meu coração a bater. Não posso dizer o mesmo de outras partes do meu corpo porque a essas já não as sinto e nem sei se ainda as tenho. Só consigo olhar em frente, para o caminho que não existe, pensar no destino que me aguarda, algures, lá em cima. Já mal consigo pensar, tamanho é o cansaço, tamanha é a falta de ar e a fome que tenho... tenho de continuar, é para isto que aqui estou, é aqui que devo estar, agora... dizem-me que já falta pouco e quase que rezo para que seja verdade, para que esta viagem infernal acabe de vez e possa descansar finalmente, possa voltar para as pessoas que amo, possa voltar a casa... Casa... isso agora está tão distante... será que ainda tenho casa?... será que as coisas ainda existem?... Não me posso distrair com ideias, tenho que olhar em frente, não me desequilibrar e prosseguir... prosseguir sempre em frente... não posso ser mais do que eu... porque só eu é que estou aqui, não são eles, não é ela, não são os miudos, não é a família, não sao os colegas e os amigos, não é a equipa de futebol aos fins de semana, não são todas as outras pessoas que já conheci na vida, não é ninguem mais a não ser eu, eu e EU!... Mas que sou eu?... Serei todas essas pessoas, o que delas me foi partilhado, as vidas em comum, o que eu fiz, o que concretizei, os filhos que tive, o dinheiro que fiz, o meu contributo para a sociedade, os jogos que joguei?... Serei os meus pensamentos, as palavras que disse, as palavras que escrevi, os momentos de meditação, as horas de raiva, as lágrimas de dor que chorei, as saudades que senti, o suor que transpirei a trabalhar, aquilo em que acredito, a música que eu oiço?... Serei os actos mecânicos que faço sem pensar, os gestos automáticos a que não dou, nunca dei e, quem sabe?, nunca darei importância?... Não, não penses, continua, continua só... Raios, a tua teimosia em pensar tudo, em remoer tudo, em analisar tudo há-de ser a tua desgraça e há-de ser aqui se não páras de ocupar espaço na tua cabeça com coisas inúteis para o sítio em que te encontras... Mas serão inúteis para a minha vida?... Todas as coisas que acabei de pensar, serão inúteis para a minha vida quando não estiver aqui?... Alguma vez estarei em mais algum lado? Alguma vez sairei daqui vivo?... Calma, abranda um pouco, pára para respirar... respirar o quê?, com este ar mais rarefeito que sei lá... Ainda não tenho resposta à minha pergunta de há pouco: quem sou eu? Que sou eu? Qual é a Verdade em tudo isto, na minha Vida, na Vida, em tudo o que existe?...

Cume. Vento, tão forte e tão gélido como nunca na vida antes tinha sentido. A adrenalina que corre pelas minhas veias e me revitaliza, me renova as forças, me transforma em homem novo. O sabor da vitória, um prazer nunca antes sentido. O desejo e a ganância de que o momento se perpetuasse e se guardasse na palma da mão, para sempre. A ambição desmedida de querer sempre mais. A vista que queria ser de falcão-peregrino para poder ver todos os picos e cumes das proximidades e mais além, muito mais além. O ímpeto de saltar de cume em cume, de ganhar asas, de ser ave e não homem para ser sempre livre. A liberdade, pura como nunca a tinha provado. A calma interior, a paz que se conquistou depois de todo o sacrifício e trabalho. A doce música do triunfo alcançado, banda sonora de proporções épicas em grandeza e intensas em tranquilidade. E a Verdade, finalmente, a Verdade...

...e depois, o Continuar.

1 comentário:

Sílvia disse...

Gostei bastante do texto, tenho aqui a Arara ao pé de mim...
A interpretação dele fica para mim...
Gostei do frio c passos...parecia uma pessoa assustadora...
E por vezes a felicidade tão perto e nós teimamos em procurá-la tão longe....
Beijos
Sílvia e Arara
PS gostei de ver a melhoria das palavras c acentos :)