21 de julho de 2009


When they discover the center of the universe, a lot of people will be disappointed to discover they are not it.
Bernard Bailey

Havia tanto tempo que ele não passava ali... Ficou surpreendido como tudo tinha mudado tanto, as árvores, os arruamentos, mesmo os bairros que constituiam a sua memória de infância. Por ali, mil corridas de bicicleta tinham sido feitas, mil jogos de caricas tinham sido jogados, gritos e gargalhadas incontáveis... Ali era a sua casa, continuava a ser a sua casa, mesmo depois de tantas mudanças de morada durante tantos anos. A cada mudança, também o seu mundo, também aquilo que era, mudava: assim é a acção do tempo sobre as pessoas. Coisas há que não mudam, no entanto: a memória dos momentos de felicidade extrema, da cor berrante que vemos cada vez que estamos felizes, do cheiro rico e intenso que paira no ar nesses intermináveis fins de tarde de brincadeira, do sol glorioso que não escalda, que estimula, do cansaço que teima em não aparecer após tanta hora de corrida, do conforto e segurança de não haver preocupações...

"...
When we were kids when we were young
Things seemed so perfect - you know
The days were endless we were crazy we were young
The sun was always shinin' - we just lived for fun
..."


Era esta a musica que passava na sua jukebox mental nesse momento... Nada ilustraria melhor o seu estado de espírito. Aquela volta era um passeio à sua memória, aos dias fantásticos. Ele merecia, depois de tudo o que tinha passado nos ultimos anos, ele merecia... Que diabos, ele merecia porque estava vivo, ponto! Tinha sido um desvio de alguns quilometros consideráveis mas valia cada segundo, cada batimento do seu coração. E como ele estava acelerado agora!
"Ah, ali foi onde eu, o Marco, o André e o Gonçalo fomos à caça dos 'peixes-cabeçudos'... coitados dos bichitos...", pensou, esboçando um esgar malandro. Mais à frente "Ehhh... ali era onde nos juntávamos antes de ir todos juntos de bicicleta até ao lago!... o que é fizeram ali? ah, nada mal pensado...". O que o mais surpreendia era o olhar triste das pessoas que passavam, algumas suas conhecidas que se mantiveram na zona, mas, na sua maioria, desconhecidas. Era um olhar cansado, desmotivado da vida, um olhar perdido e conformado à vida que levariam, olhar pesaroso e carregado por vezes. "Naquela altura só o velho Simão é que tinha uma cara assim. Todos os demais tinham uma cara medianamente alegre... a não ser quando nos intrometíamos nalgum sítio onde não eramos chamados! Hahaha!". Mas fazia-lhe impressão tamanha tristeza, o contraste entre a faces transtornadas e as suas memórias. Ali era o seu reino, caramba! Não havia lugar para caras mal-dispostas, só para sol e risos! Se pudesse punha aquela gente toda a rir... Até nos dias de chuva conseguia-se encontrar alguém com quem brincar, até os dias de chuva eram felizes... "...Às vezes mais felizes do que outros, até!".
Parou para tomar um café e fumar um cigarro sentado, apreciando o fresco ar da tarde, na que tinha sido a pastelaria mais conceituada da vila, na altura. Era uma boa oportunidade para tomar o pulso ao movimento e ao que as pessoas diziam. Passado pouco tempo, concluiu que as conversas eram as mesmas que nos outros lados: o desemprego, a crise, o governo, doenças, futebol... "Nem sei porque poderia ser outra coisa... viva a aldeia global...", pensou, enfadado, enquanto vestiu o casaco e puxou de mais um cigarro. Que pena o carácter genuíno das pessoas de então, falando em roda de amigos ao fim do dia, com um copo de tinto ou de cerveja na mão até à hora do jantar, se tivesse perdido...
O final da visita não lhe trouxe mais surpresas... passando ao lado da velha igreja, no largo da qual passara tantas tardes na brincadeira antes da catequese, observou como estava tão degradada... "As pessoas perderam a fé que tinham em algo... sentem que nada as pode ajudar, sentem-se indefesas e impotentes... que miséria...".

Nessa noite, em casa, falou disso à mesa...
- Que tristeza, Serena, se soubesses... acho que nunca deveria ter ficado lá tanto tempo... parece que a tristeza que vi na cara das pessoas me 'contaminou', parece que neutralizou um pouco da alegria que as minhas memórias da vila me davam...
- Sabes o que dizem: "Nunca voltes ao local onde foste feliz"... mas porque é que foste lá? - perguntou enquanto se levantava para ir buscar a travessa com a sobremesa.
- Sei lá... deu-me! Tenho-me vindo a lembrar das coisas que vivi na altura, sabes?, sobretudo agora, que os miudos são mais ou menos da idade que eu tinha quando morava lá. E sinto-me com pena que eles não possam disfrutar das mesmas coisas que eu na altura, por não crescerem num ambiente mais saudável, a todos os níveis.
- Nisso dou-te razão. Na nossa altura, passávamos mais tempo na rua, sem supervisão, íamos quase onde nos apetecia, corríamos, saltávamos, caíamos, magoávamo-nos... ainda tenho umas cicatrizes valentes dessas brincadeiras! Mas tens de ver também que os tempos são completamente diferentes: a televisão e o resto da comunicação social trouxe para a realidade das pessoas muitos problemas que antigamente existiam. Eles, se calhar, aumentaram mas muito mais certamente que aquilo que se vê é empolado e não está longe do que já na nossa altura se passava. Não podemos fazer muito, sabes? Mesmo que deixássemos os nossos ir para a rua brincar, que iriam eles fazer? Brincavam com quem? Os outros pais não deixam os deles ir para a rua com rédea solta, têm medo demais! E nós já fazemos o melhor que podemos, pusemo-los na melhor escola que podemos, e levamo-los a ir praticar desporto, que é onde eles têm os amigos deles... aqui em casa os computadores e as consolas substituiram as caricas e a apanhada...
- Como dizia o poeta "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades..."...
- Nem mais, querido...
- Mesmo sabendo que eles são felizes, parece-me uma felicidade artificial... artificial porque está confinada a um espaço, a alguns espaços em que só se podem fazer algumas actividades... a rua na nossa altura era 'o' espaço por excelência! Era onde TUDO era possível!
- Que fazer? - disse, encolhendo os ombros - Queres mudar o mundo? Mesmo que quisesses mudar a tua rua, o teu prédio, não conseguias, lamento... E não podes vergar o mundo à tua vontade, o mundo não é como tu queres que seja... é o que é.
Dizendo isto, começou a levantar a mesa, sido seguida por ele com o resto da loiça suja. Mais tarde, sentado no cadeirão em frente à televisão, enquanto passava mais um programa sem interesse algum, pensava: "De facto, não posso mudar o mundo. É uma pena. Somos gente a mais no mundo para isso e, hoje em dia, toda a gente sabe o que cada um faz e ninguém sabe de ninguém. É o maior paradoxo de sempre da civilização! Nunca houve tanta informação disponível e as pessoas nunca estiveram tão desligadas da pessoa do lado... continuando assim, não chegaremos a uma situação insustentável humanamente?... Na nossa altura, tinhamos referências, sítios e pessoas que sabíamos que nunca nos deixariam mal, que estariam sempre ali, pequenos (grandes) 'portos de abrigo' onde, por muito que o mundo ruísse, desabasse, trovejasse, o sol brilhava sempre e o clima era ameno. Aquele era o 'nosso' mundo, o centro do nosso universo! Podia ser uma fantasia, mas ali era o nosso centro, fazendo-nos sentir que tudo era nosso.". Findo isto, virou-se para Serena e perguntou:
- Querida, onde é que é hoje a nossa casa, o centro das nossas vidas? O nosso "sweet spot"?
- Amor... nos dias que correm, o teu "sweet spot" é onde quiseres e onde pensares e sentires que é... Quanto a 'centros' onde te podes basear... quem sabe?...

3 comentários:

Sílvia disse...

Olá Hélio, q serias Henrique, não fossem os deuses ter posto na frente de quem te pôs o nome a palavra q define um elemento da tabela periódica!
Cheguei há pouco a casa dps de um dia de trabalho onde p o fim da tarde os sapos decidiram borbulhar...
Adorei a foto, não arrisco a rua ao certo mas fez-me lembrar umas escinhas perto do miradouro de Sta Luzia, conheces? Linda vista sobre a cidade.
Qto ao texto fez-me sentir muitas coisas e pensar mais ainda.
Não concordo c a Serena, achei piada ao nome q arranjaste p a mulher dele, penso q podemos voltar ao sítio onde fomos felizes e voltar a ser felizes, só q de outra forma, nada se repete, nem mesmo a felicidade. Viveste mais, sabes mais, experimentas as situações de forma diferente, não há volta a dar-lhe.
Qto às memórias vi n'O Bairro Alto, programa do bendito canal 2, em q se falava das memórias e q os estudiosos desses assuntos têm uma teoria sobre a memória q achei fascinante, ora escuta só: a memória q tens de alguém, sum sítuo, duma sensação, dum sentimento~, o q seja, não são iguais, isto é, a memória q tens reporta-se à última vez q te lembraste dessa memória, será a memória da memória, engraçado não é? Dá q pensar....será q é daí q vem a expressão " a memória é traiçoeira", pq assim teremos fotocópias das fotocópias das fotocópias da memória original....
Concordo c ele no q diz respeito à desumanidade p anda no mundo...acreditas q já presenciei na farmácia tantas coisas dessas: gente q vê cair uma bengala a um velhinho ou a alguém c pouca locomoção e ningúém a apanha? Gente q não dá a vez a quem de direito pq tem apenas mais pressa q os outros, eu costumo brincar e dizer q devem ter mais pressa p morrer, pq é p lá q caminhamos todos...para quê tornar tudo mau à nossa volta? Clro q nem tudo é mau e tb já vi lá mta gente boa, sabes q naquele momento a única coisa q interessa é ser bom p o outro, q sem querer nada em troca só deu mas q recebeu mto mais do que o q deu...felizmente já me senti muitas vezes assim...sinto-me priveligiada c o meu trabalho q me dá oportunidade de fazer o bem sem olhar a quem, para contrabalançar os meus pecados, tão humanos.
Qto ao ambiente artificial em q vivemos é realmente um paradoxo, até este comentário é artificial, não seria melhor falarmos ao invés de escrever através de uma máquina à espera q tu com outra máquina desse lado o leias? ;)Mas realmente é o maior paradoxo dos nossos tempos: tanta informação tem-la ao alcance de um click num teclado e por outro lado tocar noutro ser humano, quer física, quer emocionalmente é tão difícil, diria mesmo quase impossível, queremos tudo para anteontem, tudo rápido sem saborear as pequenas coisas do caminho por onde passamos nesta nossa vida.
Tudo isto p dizer q gostei mto do texto, chocoalhou cá dentro muita coisa e agitou o pensamento e aguçou a minha já perspectiva de vida aproveitar tudo o q me dão, viver como se fosse o último, sem arrependimentos, pelo menos tento...
I'll see you tomorrow.

Besitos
Sílvia
PS1 tens q resolver o teu problema c os acentos nas palavras:)

ARita disse...

Espreitei.
Li aqui e ali...
Gostei do que li e do que senti.
Esse é o verdadeiro sentido da escrita. Ou da leitura. Depende do lado em que se está.
Não resisti à foto. Fiz uma muito semelhante há poucos dias. Naquele momento passava o eléctrico...

ARita

Hélio disse...

ARita:
Obrigado por ter cá passado e por ter gostado! :) Se calhar com o electrico tinha ficado mais giro... tenho de lá voltar a ver se o apanho de outra forma.
Beijinhos!