15 de julho de 2009


Make it a rule of life never to regret and never to look back. Regret is an appalling waste of energy; you can't build on it; it's only for wallowing in.
Katherine Mansfield (1888 - 1923)

"Devia ser proibido levantar-se a esta hora...". Ele era a imagem do sono, sem tirar nem pôr. Na fila em que esperava, outros também tiritavam de frio, exibiam olheiras, chegavam mesmo a dormitar de pé. Puxou a gola para cima e abraçou-se com mais força, aconchegando-se à parede. O vento frio que se fazia sentir era frio demais, mesmo para aquela altura do ano. Era um frio glacial, um frio que perpassava todas as camadas de roupa que se vestissem e que gelava cada centímetro de pele. Mas iria valer a pena, com o dinheiro extra que iria ganhar, poderia comprar a prenda que o filho tanto queria há meses. Só de imaginar o brilho nos olhos com que ficaria, valia a pena todo o esforço.
- Próximo!!
Avançou mais um lugar. Mais uns minutos e seria a sua vez de se registar. O lugar não era, de todo, dos mais atractivos: implicava trabalhar 6 horas antes do seu trabalho normal, ao ar livre, em condições sem grande segurança, com pessoas de carácter duvidoso. No entanto, seria bem remunerado e não seria por muito tempo, apenas um trimestre. "Há-de passar rápido, de certeza...". Pela sua mente passaram imagens do passado, de outros Invernos passados ao frio das madrugadas, de manhãs chuvosas, de nevões súbitos, de caixotes por si carregados quando as suas mãos deveriam ter sustido somente o peso dos lápis, ou de um livro, ou, nos intervalos, de uma mão cheia de berlindes. "Ahh, triste vida aquela...", pensou para com os seus botões. Que diferença para os tempos de agora! Na altura, uma pessoa se quisesse estudar habilitava-se a apanhar uma carga de pancada só por levantar a hipótese; agora, os miúdos fazem tudo para sair da escola. "Que será que aquilo tem de tão mau para eles quererem sair de lá?". Apesar de tudo, os poucos anos que frequentou os bancos da escola, tinham sido anos risonhos, com uma ou outra reguada pelo meio, mas, no geral, anos felizes. Sabia que o seu miúdo também gostava de lá andar, o que contribuía ainda mais para a sua confusão sobre o assunto. "Se ele continua assim, um dia há-de ser doutor.". Quem não o quereria ser?...
- Próximo!!

...

Semanas mais tarde, enquanto caminhava pelo cais, dirigiu-se ao contramestre. A chuva caía a pique, mal se viam as gruas do cais, o chão, gorduroso do gasóleo derramado das mangueiras que abasteciam os barcos, era uma pista de patinagem à espera de acontecer.
- Mestre, posso entrar?
- Força! Diz lá...
- É que... os rapazes estão a dizer que isto não são condições para se trabalhar. Não têm luvas, o fato-oleado não os protege da chuva, estão encharcados até aos ossos e das botas nem se fala. Mas pior do que isso, é que mal se consegue ver o chão... Chefe, aquilo é um perigo, sabe Deus a desgraça que pode acontecer...
- Mas tu agora já és delegado sindical para vires reinvindicar? Quem é que te nomeou representante? Ainda por cima um "tapa-buracos"! A tua sorte foi o Chico ter ido para a Suiça trabalhar, ouviste?? E ainda vens aqui reclamar "das condições de trabalho"... - escarneceu, num esgar de gozo - Já trabalho aqui há 45 anos, mais dos que os que tens de vida de certeza rapazinho, e nunca vi acontecer aqui acidente nenhum por causa do raio do gasóleo ou da chuva. Sabes o que mata as pessoas? Irem às putas até às tantas e depois vêm para aqui armados em carapaus de corrida com a mania que têm 20 anos e que ainda aguentam a noitada e depois andam a dormir em pé, ou com um "cabaz" tão grande nos cornos que mal se aguentam! Vai-lhes dizer isto e leva este recado também: eu que veja alguma daquelas caixas por descarregar daqui por uma hora, que garanto que vão haver acidentes!!
- Com licença, mestre... - retirou-se apertando o oleado e colocando o chapéu impermeável. "Grande bandalho...".

Pensou como iria dizer isto aos colegas. "Só tenho que lhes dizer o que ele me disse e acabou!". Não seria fácil, ele tinha sido escolhido pois era ele quem menos despertava, normalmente, a "lendária" ira do contramestre. Podia ser que o ouvisse... Mas não, a resposta tinha sido o que se viu e, ao transmiti-la aos companheiros, o que se via espelhado na cara de todos era um misto de revolta, ressentimento mas também de inevitabilidade das circunstâncias.
- Ó pessoal, 'bora lá, pá! - gritou um deles - Quanto mais cedo começarmos isto, mais cedo acabamos!
Uma pequena massa humana avançou, resignada, em direcção ao cais ao qual estava o barco à espera de ser descarregado. Havia cordame, mangueiras, algumas caixas próximas espalhadas perto da borda. A carga era pequena, proporcional à embarcação que a trazia, pelo que tinha que ser descarregada à mão, sem auxílio de grua. Ficaria muito caro para a carga que era, disseram-lhes, além disso, só tinham um operador de grua disponível - o outro estava de baixa.
Enquanto andavam no costumeiro vaivém, a chuva intensificou-se. Aceleraram, pois, as manobras de descarga e, sabendo que a traineira tinha de partir rapidamente, decidiram também começar o reabastecimento de combustível. A mangueira, quase tão velha como o cais, não apresentava as mínimas condições de segurança para aquele tipo de operação mas era o que havia. "Isto está quase feito...", pensou ele enquanto pegava em mais um caixote.
- Ó Jorge, daqui a bocado mais vale a pena descarregar à mão! Já viste esta chuva? Mais um bocado e o barco fica a navegar por cima do cais! É só deixar cair as caixas p'ra fora de borda!
- É pá, eu só quero é sair daqui o mais rápido possivel. Esta ondulação não ajuda nada a descarregar... o barco está farto de bater contra o cais!
De facto, o esforço de equilíbrio com a carga no convés era quase uma obra de malabarismo. Ele afastou-se de Jorge, tentando ver por onde ia, na maioria dos casos, adivinhando mais por onde caminhava. Ao passar no estrado que servia de travessia entre o convés e o cais, uma ondulação mais brusca afastou a embarcação do convés, arrastando o estrado para o espaço que se abriu. Ao cair, bateu com a cabeça na borda do convés, deixando-o inconsciente...

...

Tal como tinha adivinhado, o brilho nos olhos do filho era maravilhoso, mas estava muito para além do que ele imaginava. A alegria da criança nesse Natal era contagiante, convidando toda a gente a brincar com ele e o seu brinquedo novo. Niguém conseguia resistir. No entanto, havia no ar um misto de alegria e de tristeza: consequência do desastre, ele tinha ficado paraplégico, uma condição que os médicos tinham dito como sendo "muito difícil de reverter: a andar, se isso acontecesse, só com o auxílio de uma bengala ou uma canadiana". Depois de uma semana em coma, esperara-se o pior, mas ao abrir os olhos, a esperança de toda a família e amigos renovou-se, uma renovação de curta duração perante o prognóstico dos medicos.
"Que raios, porque é que têm que olhar assim para mim? Olhem para o miúdo! Não é muito melhor? E assim todos sorriem! Não é preciso estar num dia de festa com um ar miserável... até parece que morreu alguém, ou sei lá o quê!...". E que viria a seguir? O dinheiro que tinha recebido do seguro era uma pequena ajuda mas não compensava, a médio prazo, a ausência do seu principal trabalho. Era certo que se mostraram solidários, que "tudo vai ficar bem, vais-te pôr a andar em três tempos", que não se preocupasse, mas de que lhes serviria um homem sem pernas?... e sempre aquela expressão nos rostos assim que desviava o olhar... "Sorrisos, mesmo sorrisos de crianças," - pensou - "não trazem o pão para casa, nem devolvem o caminhar a um homem."

1 comentário:

Mag disse...

Gosto desta tua nova "onda" de contos, Hélio... embora este tenha sido tão triste... (talvez por ser tão dolorosamente real).
Bj